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É Tudo Verdade: filme sobre Belchior traça panorama episódico do artista
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

É Tudo Verdade: filme sobre Belchior traça panorama episódico do artista

Documentário "Belchior - Apenas Um Coração Selvagem" costura imagens de arquivo de entrevistas e performances para compor panorama artístico do sobralense
Tipo Opinião
Imagem do documentário
Foto: divulgação Imagem do documentário "Belchior - Apenas um Coração Selvagem". Exibido no É Tudo Verdade 2022

"Eu sei que todos vocês já me conhecem, graças a Deus e graças à televisão. Mas eu quero me apresentar mais uma vez. É muito bom ser descoberto". São essas as palavras iniciais do sobralense Antonio Carlos Belchior ao surgiu em tela no longa "Belchior - Apenas Um Coração Selvagem". Dirigida por Natália Dias e Camilo Cavalcanti, a produção constrói um panorama artístico episódico da carreira do cantor e compositor a partir de rico acervo de entrevistas e apresentações. O longa fica disponível on-line amanhã, 7, e sexta, 8, no Festival É Tudo Verdade.

Um dos principais nomes da música brasileira, Belchior ficou conhecido a partir dos anos 1970, depois de ter os talentos como compositor "revelados" ao País pela cantora Elis Regina — que gravou, de autoria dele, "Como Nossos Pais" e "Velha Roupa Colorida". Mais para o final da vida, porém, o artista tornou-se figura quase mítica por conta do "sumiço" pelo qual ficou marcado.

É curioso que, apesar da negação midiática e social empreendida por Belchior no século XXI, o longa construa o retrato que faz do artista quase que inteiramente a partir de registros da imprensa, em especial a televisiva. A partir de um arquivo profundo e múltiplo que abrange décadas, além da utilização de acervos familiares, o filme apresenta Belchior a partir das próprias palavras, falas e ideias.

O vídeo em preto e branco de uma entrevista não contextualizada ou datada funciona como espécie de "fio condutor" da narrativa, com longos trechos desta fala específica servindo como uma espécie de narração feita pelo próprio cantor. O caráter biográfico da produção, então, ganha ares de "autobiográfico".

Apesar da riqueza do arquivo desvelado, "Belchior - Apenas Um Coração Selvagem" se constitui estruturalmente um tanto episódico, "blocado", começando e encerrando temas maiores de forma muito demarcada, sem ligações entre os assuntos avizinhados pela montagem. Religião, fome, o disco "Alucinação" (1976), impactos da ditadura, sucesso e redemocratização são alguns dos tópicos abordados por Belchior na estrutura proposta pelo longa.

Há ainda, em "participação especial" conforme os créditos, o ator cearense Silvero Pereira, que surge em inserções performativas nas quais declama letras de Belchior. Silvero tem inegável magnetismo frente às câmeras, mas, por melhor que seja a entrega dele aos entrechos, as aparições soam quase injustificáveis no panorama geral por serem breves e pontuais demais.

Outro senão da produção é a opção por se apoiar, também demasiadamente, na redundância entre imagem e fala. A sequência ao som da canção "Alucinação" resume o problema. Nela, cada vídeo ou fato elencado "descreve" literalmente os versos da música. Quando o verso diz "garotas dentro da noite", o filme traz a imagem de uma edição do Congresso da Mulher Paulista; já quando o verso conta de "um rapaz delicado e alegre que canta e requebra", a imagem é a de uma apresentação da banda Secos e Molhados. A reiteração descrita esvazia o momento.

Baseando-se em um olhar lançado ao artista, o dos arquivos de imprensa, que é majoritariamente sudestino, o longa tem os melhores momentos nas reflexões dele sobre arte, poesia e "nordestinidade". Afirmando que deseja apresentar "uma música que se pretende autobiográfica em determinado nível, contemporânea e nordestina", Belchior é questionado por um entrevistador sobre as "raízes de música popular".

O jornalista pergunta se ele acredita que elas sempre estarão presentes ou se "a cidade grande, o sul", iriam "dilui-las". "Raiz é tudo aquilo que entra na sua formação, tudo aquilo que você ouve, absorve e que entra no seu trabalho", responde, antropofágico, o cantor.

Com o sucesso adquirido por ele com o disco "Alucinação" (1976), a intenção de apresentar uma música "contemporânea e nordestina" ganhava, então, corpo. A partir do álbum, o artista destaca o momento de uma "dicção nova", menos metafórica e mais direta.

Um trecho de uma matéria de jornal impresso utilizado destaca a ideia do cantor: "A minha poesia é uma espécie de anti-poesia, ela tem uma discursividade mais próxima da prosa, ou do proseado (...) Esse jargão poético (...) dificulta o entendimento; eu prefiro ser direito e 'prosaico': em vez de querer dizer, eu prefiro dizer, sabe?", defende Belchior.

São poucas, porém, as controvérsias abordadas mais diretamente pelo longa. Um dos "blocos temáticos" mais interessantes, porém, é aquele focado numa curva descendente na carreira do artista por volta dos anos 1990, na qual ele chega a ser descrito como "chatíssimo" em textos. "Eu quero me descondicionar da boa e da má crítica", desafiou à época.

Imagem do documentário "Belchior - Apenas um Coração Selvagem". Exibido no É Tudo Verdade 2022(Foto: Mario Luiz Thompson / divulgação)
Foto: Mario Luiz Thompson / divulgação Imagem do documentário "Belchior - Apenas um Coração Selvagem". Exibido no É Tudo Verdade 2022

Questões mais pessoais de Belchior, porém, como as motivações para o "sumiço", as acusações de problemas financeiros ou a relação distanciada com os filhos, não são tratadas no longa.

Quase ao final da produção, uma fala do próprio artista ajuda a explicar, pelo menos, o que norteou a escolha da produção: "Você sabe que a pessoa do artista é menos importante do que o personagem artístico. Quer dizer, o trabalho do artista importa mais do que o significado particular da sua vida. Tudo que está dito diz respeito a um personagem maior que, acidentalmente, pode ser eu", diz ele.

A autoficção é, curiosamente, uma constante na trajetória do cantor. De nome legítimo Antonio Carlos Belchior, apresentava-se como Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes" para acrescentar, ao final, a troça de ser um dos "maiores nomes" da música popular". O "grande nome" era, em si, um personagem.

Absorvendo a ideia proferida e vivida pelo protagonista, "Belchior - Apenas Um Coração Selvagem" opta por traçar um panorama do cantor e compositor pela poesia e da arte dele arriscando partir do "artista Belchior" para chegar à "pessoa Belchior", mas conseguindo somente esbarrar na superfície que ele mesmo deixou visível.

Belchior - Apenas Um Coração Selvagem

Quando: quinta, 7, às 21 horas, e sexta, 8, às 13 horas

Onde: É Tudo Verdade Play

Mais infos: www.etudoverdade.com.br

Foto do João Gabriel Tréz

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