João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Em um cenário pós-apocalíptico, os humanos desenvolvem órgãos novos e inéditos a partir dos próprios corpos e empresas ofertam espécie de mobiliário tecnológico que se conecta aos clientes e auxilia em funções vitais, como comer e dormir. Neste contexto, um casal de artistas, Saul (Viggo Mortensen) e Caprice (Léa Seydoux), se utiliza da chamada Síndrome da Evolução Acelerada para criar momentos que envolvem cirurgias públicas e performativas de extração dos órgãos. É a partir deste panorama que "Crimes of the Future" se desenrola.
A realidade na qual o filme se estrutura é apresentada quase que sem explicações ou didatismos, com a narrativa se desenrolando com todo aquele contexto já posto e assimilado pelas personagens. A única sequência que se difere disso, inclusive em termos de cenário, é a da primeira cena : uma espécie de prólogo que se passa em uma praia e sem os marcadores que a obra utiliza depois, aparentemente descolando-o do que se seguirá.
Após o prólogo — que se desenvolve até uma conclusão chocante —, o longa já embarca no acompanhamento do cotidiano do casal protagonista, entre utilizações dos tais "móveis" que se acoplam nos corpos e conversas sobre temas que vão do surgimento de novos órgãos à próxima performance cirúrgica de ambos.
Confira o trailer:
Pequenos momentos despontam para "elucidar" algumas questões a quem assiste, mas outros surgem junto com desenrolares que, mesmo às personagens, soam como novidades. Como exemplo dos primeiros, é possível citar a informação de que, naquele futuro, os humanos não sentem mais dor, o que ajuda a entender tanto a "evolução acelerada" quanto a fixação por cirurgias, por exemplo.
Já dos segundos, está o Registro Nacional de Órgãos, uma espécie de repartição pública que demanda justamente a documentação dos novos órgãos criados por humanos. É nele onde trabalham Timlin (Kristen Stewart) e Wippet (Don McKellar), representantes de uma ideia de funcionalismo público que mantém o controle das tais metamorfoses biológicas.
Os caminhos do casal e da dupla de funcionários públicos se cruzam e, daí, se desenrola série de novos entrecruzamentos que vão dando vazão à trama. Timlin e Wippet se interessam pelas performances de Saul e Caprice, uma investigação em paralelo revela camadas escondidas daquela realidade e os artistas também descobrem outros usos para sua prática.
Mesmo com essas "novidades" narrativas, o filme sempre parte da base já estruturada e posta como "verdade" naquele contexto ficcional. É um respeito notável à própria lógica interna e à própria criação do universo proposto — ou seja, às bases da própria diegese (termo que, em palavras básicas, refere-se à dimensão ficcional de uma narrativa).
Tudo na realidade de "Crimes of the Future" parte de uma base palpável que é entendida pelas personagens como a realidade na qual vivem. Ou seja, não é estranho que uma cadeira feita de algo que aparenta ser matéria biológica tenha "cabos" de conexão que se ligam ao corpo de Saul, da mesma forma que a comparação que Timlin faz entre cirurgia e sexo pode até surpreender os artistas, mas encontra ressonância neles por ter, afinal, sentido.
A polissemia do termo "sentido" é, inclusive, bem-vinda, uma vez que a palavra diz sobre a faculdade mental de compreensão e percepção lógica de algo ao mesmo tempo em que aponta para uma ideia de tato, de fisicalidade.
De certa forma, é pela relação entre "fazer sentido" e "ser sentido" que "Crimes of the Future" se interessa. No plano mental da lógica interna do filme, até a mais estranha decisão narrativa segue "fazendo sentido" por partir da base tacitamente concreta daquele universo. Já no plano físico, a vazão dramática vem literalmente de dentro do corpo.
Já em relação ao espectador, o fazer ou ser sentido ganha contornos variáveis. Se ele aceita o acordo interno da trama também como seu, engrena e engaja. Se adentra com titubeios, pode preferir se apoiar em "paralelos simbólicos" entre o filme e a "nossa" realidade — buscando, então, "dar" sentido.
É uma escolha válida, decerto, mas o palpite arriscado aqui é que "Crimes of the Future" prefere "ser" sentido do que "fazer" sentido. O filme soa tão confiante e comprometido na própria ficção que certas escolhas parecem apontar, até mesmo, uma recusa pelo subterfúgio do simbolismo.
De novo, a leitura metafórica é possível (e até inescapável dentro de uma necessidade lógica de consumo), mas a produção parece insistentemente questioná-la como saída. Um aspecto flagrante neste sentido é, curiosamente, uma espécie de tom de humor que o longa assume.
Ele vem justamente de uma construção afetada, estranha e artificial não somente do contexto que apresenta, mas também das situações e das próprias personagens. O exemplo máximo disso é Timlin, defendida por Kristen Stewart em um registro profundamente antinatural, que varia entre uma voz ao mesmo tempo estridente e emudecida e tem gestual desconcertante e desconcertado.
Essa escolha depõe sobre a confiança do filme em si mesmo justamente por quase soar como uma provocação ao peso e à seriedade do verossímil, e até à constante busca do público por "reconhecimentos" e "identificações" com obras de arte. A experiência de "Crimes of the Future" convida, enfim, ao desafio de uma recepção a ser sentida "no corpo" — literal e/ou metaforicamente.
Crimes of the Future
De David Cronenberg. 107 min.
Quando: estreia dia 29
Onde: Mubi
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