Logo O POVO+
Wara, "Soberane" e a criação como saída
Foto de João Gabriel Tréz
clique para exibir bio do colunista

João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Wara, "Soberane" e a criação como saída

Cineasta cearense Wara fala sobre produção do curta "Soberane", selecionado no Festival de Locarno, e experiência formativa em Cuba
Tipo Notícia
Curta
Foto: reprodução Curta "Soberane" foi filmado em Cuba

O site do Festival de Locarno indica que o curta "Soberane" vem de Cuba. É um fato, decerto, mas o filme que participa da competição internacional Pardi di domani no evento suíço tem, também, raízes cearenses. Estudante da Escola Internacional de Cinema e TV de Cuba (Eictv) desde 2018, Wara, que assina a direção da obra, é de Fortaleza. As relações de desterro, pertencimento e intimidade experienciadas — e aprofundadas na pandemia — no país latino-americano por elu, uma pessoa indígena e não-binária, são motor criativo do filme. O curta espelha, pela ficção, contexto vivido por Wara, que dirige, co-roteiriza e atua no filme. Nele, acompanha-se Hakan, que prefere seguir vivendo em Cuba a voltar ao país natal, o Brasil. Em entrevista, Wara compartilha processos da produção de "Soberane" e destaca a arte como ferramenta de elaboração frente ao "caos". Confira íntegra na versão digital da coluna.

LEIA TAMBÉM | Curta dirigido por cearense vence prêmio no 75º Festival de Locarno

O POVO - Qual foi o contexto de criação de “Soberane” dentro do processo formativo da EICTV?

Wara - No caso de Direção de Ficção, éramos quatro estudantes, o que totalizava quatro curtas. A gente realizou os projetos seguidos nos meses de fevereiro e março de 2022. As condições eram muito difíceis, já que havíamos atrasado um ano por conta da pandemia, o país está passando por uma crise histórica, faltava infraestrutura, entre tantas outras coisas que afetaram a gente emocionalmente também. Não foi fácil, para nada: orçamentos foram cortados, a equipe tinha que ser o mais reduzida possível para cumprir com o protocolo sanitário e a falta de combustível sempre parecia limitar as gravações a lugares que não funcionavam pra história. No nosso último dia de rodagem, quando gritaram o corte final, eu não podia acreditar que tínhamos conseguido o que parecia impossível.

OP - Em um texto, você fala que “Soberane” nasceu da “necessidade de enviar uma carta em uma garrafa”. Quando e de que forma você pensou inicialmente no filme?

Wara - Em 2020, a Escola parou as atividades e todes es estudantes tiveram que voltar para seus países. Decidi ficar, porque não queria voltar pro Brasil. Aí começou o filme. Vivi em Havana por quatro meses com a ajuda de uma amiga, trabalhando com entrega de comida vegetariana para pagar o básico. Muitas coisas me disparavam ideias de histórias, escrevi muito nesse período. Mas o que mais me intrigava era o porquê de não querer voltar, o que faltava em mim ou o que tinha mudado. Não tinha sentido querer ficar se eu sentia tanta falta da minha terra, mas também não tinha sentido voltar se aquela cidade fazia parte de mim também. Nessa época, também falavam muito da vacina cubana "Soberana" e fiquei com esse nome na cabeça. Lembro de estar pedalando, voltando pra casa depois de um dia de entrega, debaixo de uma chuva astronômica (como são as chuvas caribenhas), triste porque tava cansade, porque não tava fazendo o que eu tinha proposto a mim mesme e pensei (no fluxo da pedalada) que eu poderia ser qualquer coisa naquele momento, menos soberana. Cheguei em casa e escrevi num papel "gravar alguém pedalando debaixo da chuva. Impotência". No fundo, queria dar sentido pra todo o caos que acontecia ao meu redor e me aferrar a uma história era uma saída.

 
 
 
Ver essa foto no Instagram

Uma publicação compartilhada por (@soberane.shortfilm)

OP - Em que termos a história de Hakan reflete a sua? De que forma a experiência em Cuba te fez se perceber e perceber o mundo de outras formas, sob outra lógica?

Wara - Em termos de conseguir pertencer a um lugar apesar de tudo. Hakan é uma pessoa que cria o próprio universo no meio do caos pandêmico cubano. É nesse lugar onde elu consegue construir uma segurança pra poder fazer isso, ainda que seja sempre tratade como a pessoa estrangeira que vem do Brasil. No meu caso, meu fenótipo andino e sotaque me denunciavam a todo momento pelas ruas de Havana. Só queria passar despercebide, mas era impossível. Me sentia a todo momento uma alienígena que tinha saído do meu planeta e ido para outro, assim como Hakan, que em vez de alien se inventa cosmonauta. Para além disso, ambes já passamos um tempo considerável na ilha, o suficiente pra já não termos mais a mesma visão de mundo. E de todas as mudanças (que não foram poucas) acho que a mais radical foi como eu me relaciono com o consumo e me disponho às pessoas. Não gosto de falar muito disso porque a última coisa que eu quero é romantizar o que a gente entende como "comunismo". Mas sim, sendo honeste, isso mudou bastante dentro de mim por uma questão de necessidade e de convivência.

OP - Sobre as múltiplas funções, que desafios se impuseram nesse processo de assumi-las, mas também que descobertas?

Wara - Durante o processo, eu não parava de pensar no projeto, nem durante um segundo. Foi cansativo, dormia e acordava com Hakan. Na escrita, foi difícil conseguir selecionar coisas que tinham passado na minha história real, porque cada fragmento de memória podia gerar uma história. Fede Blanco (que é roteirista comigo, também não-binárie e especializade em roteiro) fez um trabalho essencial, muito profissional e sensível, já que tinham momentos em que nossas reuniões de escrita se convertiam em terapia e eu nem me dava conta. O que fizemos foi nos amarrar a um tema e tentar seguir com ele até o final pra não viajar demais. Já atuar e dirigir um filme exige outra lógica de produção. Em provas de câmera, a equipe técnica se deu conta de que precisava de muito mais tempo que o normal, porque eu precisava ver o que estava sendo gravado. Então pensamos em uma dinâmica de set na qual se gravava uma tomada, fazíamos a revisão e depois gravávamos duas tomadas seguidas. Em termos de logística, foi desafiante pensar como funcionaria isso, porque nos davam só quatro dias para gravar (o que em nosso caso era pouquíssimo tempo). Então, nos preparamos e gravamos na pré-produção para aproveitar mais o tempo. No fim, além de se descobrir como alguém que ama atuar, descobri também pessoas com as quais quero trabalhar pro resto da minha vida, que apoiaram e aportaram ao projeto de coração, corpo e mente.

OP - A trilha sonora conta com música cearenses da dupla New Model e da Orquestra Solar de Tambores. Qual foi a importância de trazer esses elementos que também te compõem?

Wara - Lembro que antes de ir pra lá, em uma conversa com Pingo de Fortaleza (cantor, pesquisador e um dos idealizadores da Orquestra), disse que ia levar a Solar pra lá. Não sabia como, mas acabou sendo. Nessa época também escutava sem parar “Sad Fashion”, do New Model, tava na minha playlist de viagem e escutava quando sentia saudades das festas em Fortaleza. Então, as coisas simplesmente se encontraram. Na Escola, as pessoas que estudam direção aprendem a criar a partir da maneira que vêem, escutam e sentem o mundo. Somos muito encorajades a realizar narrativas autorreferenciais. Isso é muito bonito porque eu não tinha planejado milimetricamente que tivesse tanto de mim e de Fortaleza. Quando eu vi, já tava acontecendo e eu tava adorando porque sentia tudo fluir com muita honestidade, afinal era uma história minha também. Me senti muito feliz de ter feito um curta sobre uma pessoa cearense que vive em Cuba. Acho pertinente trabalhar personagens latinoamericanes em nosso continente. Que sonham, inventam e amam. É uma forma da gente se encontrar, encontrar nossas narrativas e nossas sensibilidades sem interferência gringa e europeia.

OP - Estamos nos falando antes das primeiras exibições do filme em Locarno, mas a matéria sairá já com as sessões realizadas. Quais as expectativas em relação à experiência de repercussão no festival e o que a seleção em si já significa para você?

Wara - Não quero criar expectativas sobre a exibição. Mas, já criando, espero que perguntem muito. Estamos indo eu, Camilla Lapa (Recife) e Emmanuel Guerrero (México), que fotografaram o curta com maestria. Estamos indo para literalmente colocar nossa cara no mundo e dizer que estamos fazendo “cine de prietes” (“prieto” é o termo que se usa comumente aqui no México para pessoas “morenas”, indígenas). Também vamos para desfrutar e conhecer gente. Nunca fui presencialmente a um festival de cinema internacional antes e acredito que seja uma experiência única. Sobre a seleção, foi uma grande notícia porque, até então, sabíamos que tínhamos feito um bom trabalho e estávamos satisfeites. A avaliação na Eictv também foi muito boa, com direito a elogios de Eliseo Altunaga e Fernando Pérez. Mas ter nosso trabalho reconhecido fora foi um indicativo de que estamos em um bom caminho. Não porque seja a Suíça (poderia ser qualquer outro lugar), mas por pensar que outras pessoas, de tão longe, possam sentir algo em relação ao nosso trabalho ao ponto de quererem se meter em uma sala de cinema para mais outras pessoas verem. Isso nos dá alegria.

Podcast Vida&Arte

O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui

Foto do João Gabriel Tréz

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?