Cineasta Gabriel Martins: "Lançar 'Marte Um' em 2022 é reivindicar a vida"
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Deivinho, caçula, sonha em ser astrofísico, mas se sente pressionado pelo pai para enveredar pelo futebol. Wellington, o genitor, trabalha como porteiro em um prédio de elite e frequenta sessões do Alcoólicos Anônimos. Eunice, a irmã mais velha, busca independência simbólica e prática ao se apaixonar por outra mulher. A mãe, Tércia, se vê atravessada por um mal-estar sintomático. Em cartaz nos cinemas do Brasil e um dos favoritos para representar o País na disputa do Oscar 2023 — a decisão será anunciada nesta segunda, 5 —, o filme "Marte Um", do mineiro Gabriel Martins, acompanha questões pessoais de uma família negra de classe média baixa em tempo e espaço específicos: o Brasil logo após o resultado das eleições de 2018. Concretizado a partir da aprovação no Edital Longa BO Afirmativo 2016 — lançado pela Agência Nacional do Cinema ainda no governo Dilma e descontinuado após o impeachment da presidente —, o longa foi filmado justamente em novembro e dezembro daquele ano eleitoral, ganhando lançamento, justamente, pouco antes de novo pleito presidencial. A partir de costuras e elaborações entre as indissociáveis intimidade e política, o filme traça um retrato, nas palavras de Gabriel, de vida e poesia. "A gente passou por um trauma na nossa sociedade brasileira e, diante de um trauma, para mim, o único gesto possível é o de um afeto imenso", defende o cineasta.
O POVO - Como e quando nasceu a ideia do filme e, depois, se deu o processo de submissão do projeto ao edital?
Gabriel Martins - O filme nasceu em 2014, mais ou menos durante a Copa do Mundo, pensando em como falar de futebol, de sonhos, a partir da perspectiva de um garoto negro de periferia. A força do "Marte Um" vem disso, de pensar como um sonho pode ser mais forte do que tudo. A gente submeteu (o projeto) por volta de 2015, "Marte Um" foi sendo depurado, escrito, aperfeiçoado para a gente poder concorrer a esse edital que era muito importante pra gente — era muito importante participar dessa primeira edição dele sendo um realizador preto, sendo uma produtora de periferia que tem também outros realizadores negros.
OP - Junto de “Marte Um”, os projetos de “Um dia com Jerusa”, de Viviane Ferreira, e “Cabeça de Nêgo”, de Déo Cardoso foram aprovados. Após o impeachment da presidente Dilma, porém, a chamada foi descontinuada. Além disso, os recursos foram liberados após demora acentuada. Ainda neste contexto inicial, como foi esse período de espera pela liberação de recursos?
Gabriel - Esse processo de espera de liberação é um tanto exaustivo porque, primeiro, a gente depende desse dinheiro pra poder sustentar a nossa produtora, pra seguir trabalhando no projeto. Então às vezes essa demora faz com que a gente tenha que deixar o projeto em banho-maria. A gente aproveita esse tempo, óbvio, pra poder desenvolver melhor o projeto, mas às vezes a gente vai perdendo um pouco o timing e, principalmente, a produtora é obrigada a correr atrás de outros projetos, outros editais pra se manter de pé. Acho que é um desejo assim que outros projetos não precisem demorar tanto tempo pra poder serem executados. Porque se a gente fala dessa ideia inicial do Marte Um até o seu lançamento são oito anos. Oito anos aí com o filme sendo trabalhado. Eu acho que a gente precisa reduzir um pouco esse tempo pra que mais pessoas possam filmar mais, né? A gente não fique tanto assim pra poder realizar um filme.
OP - Ele foi pensado antes mesmo das eleições de 2018, mas não apenas traz o resultado delas para a narrativa, mas foi, como afirmam os créditos, filmado em novembro e dezembro daquele ano, realmente na sequência da eleição. De que forma esse contexto foi agregado ao roteiro?
Gabriel - Sempre foi meu desejo contextualizar o "Marte Um" no momento em que ele fosse filmado, independentemente de qual contexto fosse esse, porque eu queria que o filme conversasse com o tempo dele. E eu sabia que isso não tornaria o filme datado, porque conversar com o tempo a partir de questões que são muito humanas faz com que o filme resista historicamente. Tinha um sentimento de muito desgosto no ar, muita dúvida, muito medo, e de alguma forma fazer o "Marte Um" foi também sobreviver a esses medos, foi lembrar que existe algo mais forte. Curiosamente, o filme é agora lançado quatro anos depois, (no momento) em que a gente está tentando sair dessa atmosfera de medo que a gente sequer sabia que seria tão ruim — a gente sabia que seria ruim, mas foi pior. De alguma forma, o sentimento na filmagem era "precisamos resistir" e principalmente, "precisamos contar histórias que vão representar essa resistência".
OP- Apesar de ter esse marcador político bem específico, "Marte Um" se desenrola especialmente a partir de questões e problemas dos membros da família, nas quais há ligações com o contexto de País, mas também destaque aos aspectos íntimos. Como foi encontrar o equilíbrio e os paralelos entre esses dois níveis?
Gabriel - O pessoal, o íntimo, sempre foi maior pra mim. Só que a gente tem que pensar que eles são desenvolvidos dentro de um ambiente, um contexto. O equilíbrio entre as duas coisas é natural pela ideia de que a gente não está dissociado de onde vive, do país, do nosso ambiente, da nossa cultura. Quando chega nisso, nessa questão política que existe, ela é natural porque é uma característica daquele ambiente, daquele tempo, e uma coisa não está dissociada da outra, porque não é assim no mundo.
OP - Há uma irmandade forte entre as obras anteriores da produtora Filmes de Plástico. Que relações você vê entre "Marte Um" e essa produção anterior?
Gabriel - "Marte Um" segue sendo um filme sobre a importância de humanizar personagens que historicamente foram um tanto marginalizados pela ficção. Nossos personagens não são novos: tem muitos filmes na história que representaram trabalhadoras, trabalhadores, personagens de bairros pobres, com algum tipo de dificuldade financeira ou desajuste na vida. "Marte um" dá sequência a ideias sobre a potência da escolha que tem no "Nada", meu curta anterior, tem uma afirmação de negritude que é diferente da que existe no "Rapsódia para um homem negro", mas ainda assim é forte no que diz respeito ao filme se identificar como membro dessa ideia de cinema. A gente continua falando muito sobre sonhos, resistência, sobre a vida como uma grande dúvida, um lugar onde a gente navega diante de alguns mistérios. Os filmes da Filmes de Plástico pegam porque eles são muito políticos na manifestação, muito humanos nos personagens e existenciais e espirituais na feitura. "Marte Um" traz todos esses elementos (e mostra) que é possível fazer um filme clássico narrativo sem vender a alma dele e sem necessariamente pasteurizar.
OP - “No Coração do Mundo” (longa anterior de Gabriel, dirigido com Maurilio Martins) traz aspectos de "filme-coral" e “Marte Um” tem um foco maior na família, mas também aposta em múltiplos núcleos narrativos. O que te interessa nesse olhar diverso dentro de uma mesma obra?
Gabriel - No caso do "Marte Um", essa família é um organismo vivo e diverso que se separa e se une em vários pontos do filme. Estruturalmente, eu sempre quis trazer essa espécie de rotina, que a gente fosse indo e voltando nos personagens e a gente fosse com o tempo entendendo melhor cada um deles, mas também essa família. Então, é diferente do “No coração do mundo”, onde vejo o "organismo bairro". Aqui no “Marte Um”, o núcleo é um pouco menor, mas persiste a ideia de representar uma multiplicidade de olhares e pensar a empatia diante da multiplicidade de olhares. Isso é uma coisa que me parece muito rica, bonita e engrandecedora. Esse interesse diz respeito a isso, a se interessar mesmo por olhares múltiplos, por formas diferentes de pensar o mundo.
OP - "A gente dá um jeito" é uma das frases finais de "Marte Um" e ela agrega em si um sentimento norteador do filme, de uma espécie de esperança ativa. Trazendo de novo a obra para o contexto, o que significa, para você, lançá-la neste momento, em 2022?
Gabriel - Lançar "Marte Um" em 2022 é reivindicar a vida. Reivindicar a vida e a poesia em tempos de escuridão e morte. A gente passou por um trauma na nossa sociedade brasileira — pela pandemia, pela maneira que ela foi tratada, pela maneira que a política do Bolsonaro tratou a nossa população, principalmente a mais vulnerável — e diante de um trauma, para mim, o único gesto possível é o de um afeto imenso a ponto de recuperar uma crença possível na nossa vida, na nossa sociedade, na nossa resistência, a partir do olhar de ternura às coisas. A gente não pode ceder ao cinismo. A gente não pode ceder à individualidade. Me recuso a ver o mundo como um lugar que não pode ser de pessoas vencendo na vida, sabe? Isso não significa que a gente precisa ser alienado das tristezas que nos acometem enquanto humanidade. Mas o cinema, a arte, estão aí pra lembrar a gente do que é importante, que ainda existe possibilidade de amar, e isso pra mim é um gesto engrandecedor em um ano de tanta dúvida, tanto medo.
Confira o trailer do filme:
Marte Um
Quando: sessões hoje, 4, às 16h10; terça, 6, às 17h50; e quarta, 7, às 16h10
Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81)
Quanto: R$ 16, com preço promocional de R$ 10 às terças (valores de inteira)
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