Jogo de crenças move M. Night Shyamalan no suspense "Batem à Porta'"
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Em algum nível, a filmografia de M. Night Shyamalan, diretor indiano radicado nos Estados Unidos, revolve ao redor das ideias de crença e descrença. Os meios e métodos escolhidos, formais ou narrativos, variaram conforme o decorrer da carreira do cineasta, mas o interesse nas nuances do acreditar ou não estão quase sempre no cerne das obras. Novo longa do realizador, o suspense "Batem à Porta" aprofunda o embate ao propor o seguinte mote: uma família tem as férias interrompidas por quatro invasores que afirmam que ela precisa escolher um dos membros para ser sacrificado para evitar o fim do mundo. Partindo da premissa, o longa desponta como um dos mais interessantes exercícios de Shyamalan neste sentido.
A famíliaprotagonista é composta pelo casal Eric (Jonathan Groff) e Andrew (Ben Aldridge) e a filha Wen (Kristen Cui). Já o quarteto que irrompe na cabana na qual os três estão hospedados é formado pelo professor Leonard (Dave Bautista), a enfermeira Sabrina (Nikki Amuka-Bird), o funcionário de uma empresa de gás Redmond (Rupert Grint) e a cozinheira Adriane (Abby Quinn).
O cenário é econômico como o mote inicial, rapidamente estabelecido na obra. De acordo com os invasores, eles receberam visões que os levaram até aquela cabana, onde precisariam alertar a quem quer que estivesse ali da necessidade do sacrifício em prol dahumanidade.
É possível escrever sobre "Batem à Porta" pelo viés da construção do suspense — precisa e envolvente —, pelo dos incômodos — há aberturas em excesso do filme que permitem leituras potencialmente problemáticas —, mas o principal do filme parece ser, mesmo, o cerne de interesse de Shyamalan ao longo da filmografia.
O aviso do quarteto é direto, sem rodeios, e Leonard, Sabrina, Redmond e Adriane parecem convencidos do que afirmam: se a família negar escolher quem será sacrificado, estará fatalmente aproximando a humanidade do fim. A reação de Andrew e Eric, por sua vez, é de negação e desconfiança. Põe-se, assim, o embate da crença ou descrença no microcosmo da cabana.
"Batem à Porta", de certa maneira, parece acumular aspectos distintos de obras anteriores de Shyamalan. "O Sexto Sentido" (1999), "A Vila" (2004), o pouco conhecido "Olhos Abertos" (1998) e "Sinais" (2002) surgem como representantes centrais dos debates sobre crença propostos pelo cineasta ao longo da carreira. Nos dois primeiros, isso se dá pelo estabelecimento de realidades específicas que são remexidas por reviravoltas narrativas, característica pela qual o diretor ficou marcado.
Os dois últimos trazem-nos ligados à fé e religião, abordagem mais irmanada à do novo longa. O questionamento da fé ocorre na comédia dramática familiar de 1998, na qual um menino busca e questiona Deus após a morte do avô, e na ficção científica de 2002, parte do surgimento de misteriosos círculos na plantação da fazenda de uma família.
Já de "Fim dos Tempos" (2009), o novo longa parece se apropriar não somente da centralidade do subgênero "filme apocalíptico", uma vez que a obra anterior se debruça na luta de sobrevivência de um pequeno grupo frente a uma praga mortal, como de certo regime de imagem — o foco no farfalhar de folhas no início de "Batem à Porta" espelha alguns dos planos mais centrais do longa de 2009.
"A Dama na Água" (2006), por sua vez, parece se fazer presente no novo suspense de Shyamalan na medida em que ambos os filmes assumem em si mesmos, de dada maneira, um discurso falado — mas também expresso na forma — sobre criação e a qualidade concretada ficção.
A relação de embate entre invasores e família parece, de certa forma, espelhar aquela estabelecida entre criadores e público. Afinal, quem invade e quem cria divide uma narrativa tomada como fato e pede de quem ouve, em troca, que acredite. O verbo "acreditar" é, inclusive, repetidamente utilizado nas falas das personagens, de "Se você promete, então eu tenho que acreditar" a "Eu preciso acreditar em algo".
Quando o quarteto pergunta, também repetidas vezes, se a família está disposta a escolher um dos membros para sacrifício, parece demandar, na verdade, o estabelecimento de um acordo de crença, do mesmo tipo que se busca tacitamente entre o espectador e a obra na fruição de um filme, por exemplo. Esse gesto se torna especialmente curioso por aproximar o próprio diretor do papel dos invasores — ligando-os, talvez, por uma profissão de fé.
Não seria a primeira vez que Shyamalan expressa uma defesa da própria ficção frente aos olhares desconfiados que se lançam às obras dele nos últimos 25 anos. Isso ocorre com força acentuada em "A Dama na Água", mas é possível encontrar tal aspecto permeando toda a filmografia do cineasta. Ao olhar do público geral, o artista pode ser visto como o diretor refém do "plot twist", ainda que aqui ele fuja do recurso ao já revelar versões factíveis de um mesmo fato e deslocar a tensão para o jogo de crenças.
O cineasta pode, também, ser visto como aquele do "filme ruim", fama injustificada que é reforçada até mesmo por recepções positivas de novas obras dele, uma vez que o fato vem sempre acompanhado da ideia de "retorno" do diretor. Shyamalan sempre esteve aí, e segue, bem como sua afiada busca por destrinchar crença, fé, família, cinema.
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