Leonardo Mouramateus faz comédia melancólica em "A Vida São Dois Dias"
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Em "A Vida São Dois Dias", novo longa do cearense LeonardoMouramateus, os gêmeos Rómulo e Orlando vivem distantes geográfica e simbolicamente. Quando o primeiro cai doente, uma série de eventos absurdos acaba forçando certa aproximação entre eles. O primeiro é artista e vive no Brasil, tendo passagens por Fortaleza e Rio de Janeiro. O segundo é uma espécie de contrabandista de livros raros e mora em Portugal. No meio disso, há uma namorada jornalista, uma atriz de TV farsesca, uma editora perua, uma jovem estudante, a moeda "reais reais" e a volta da Coroa portuguesa, entre outros elementos que exploram os limiares entre comédia e melancolia, verdade e mentira. Em entrevista ao Vida&Arte na 26ª Mostra de Cinema de Tiradentes, onde a produção teve estreia nacional, Leonardo compartilha processos e inspirações.
Escrito por Leonardo e MauroSoares, artista português que também interpreta os gêmeos, o filme existe como ideia há mais de seis anos. Isso porque, segundo o diretor, o processo da obra anterior da dupla, "António Um Dois Três" (2017), foi um dos pontos de partida da seguinte. "Ele foi muito rico e Mauro e eu queríamos levá-lo a uma radicalidade maior", inicia o cineasta.
Ambos foram feitos de maneira independente, dividem temas e apostam em experimentos estéticos e narrativos similares. Entre aspectos irmanados, por exemplo, há a presença de duplos, personagens à deriva e limites entre ficção e realidade. "Quando a gente estava tendo as primeiras respostas de 'António Um Dois Três', ficamos alegre com as possibilidades: o tipo de feitura desse filme, em partes e de maneira colaborativa, funcionou", lembra.
Nos dois, Leonardo cita como referência o alemão Ernst Lubitsch, diretor reconhecido por comédias que, como observa o cearense, misturam melancolia e alegria. "Ele consegue combinar a comicidade e a frivolidade com o peso da vida, da morte, da dor, da solidão. Essa complexidade de encontrar profundidade na superficialidade é o que me interessa", reconhece.
O gesto se espalha na nova obra do diretor em forma e conteúdo. "Eu sabia que seria sobre afeto, irmãos que não se encontram há muito tempo, porque eu mesmo tenho um irmão. Quando fui embora (para Lisboa), nossa vida mudou e a distância fez com que a distância que já existia dentro de casa aumentasse. Nunca tive uma relação má com o meu irmão, mas essa distância é angustiante", reflete.
Em "A Vida São Dois Dias", a doença de Rómulo — inspirada em um medo que Leonardo tinha da família pegar chikungunya na época da maior incidência da virose no Ceará — dá vazão a uma série de acontecimentos que ora aproximam, ora afastam os irmãos. A narrativa adquire camadas internas múltiplas, que o cineasta nomeia como "dobras", e o tom varia entre comicidade, fantasia e melancolia.
"Todas as dobras, o labirinto, acontecem para representar de maneira formal, no tecido do próprio filme, o 'embolo' da relação dos dois. Queria fazer um filme que não fosse demonstrativo do desafeto/afeto deles, mas que ele próprio tivesse a confusão que é a relação entre alguém que você conhece tão bem e que ao mesmo tempo é tão distante. A estrutura dele está em sintonia com o universoemocional dos próprios personagens", relaciona.
Apesar de aspectos mais íntimos, o filme também vem construído de coisas "triviais, até mesmo de piadas", espírito que contamina a obra. "O fato do Mauro ter facilidade de imitar sotaque brasileiro e sotaque português é um dos motivos disparadores dele fazer gêmeos, e também nos interessavam muito alguns clichês de novela", exemplifica.
As liberdades do processo criativo de estruturação da história se seguiram também na feitura "concreta" da produção. "A Vida São Dois Dias" foi gravado no Rio de Janeiro, em Fortaleza e em Lisboa, decisão parte planejada, parte circunstancial. "Eu já tinha a estrutura inteira junto com o Mauro e sabia que tinha que se passar em Lisboa, porque um dos gêmeos estava lá, e em Fortaleza, por questões minhas", explica.
O segmento narrativo do Rio, porém, ocorreu graças às circunstâncias. "António Um Dois Três" teve exibição na capital fluminense, local onde Leonardo tinha possibilidade de uso de equipamentos técnicos por conta de um prêmio conquistado em um evento de cinema. A cidade também acolhia amigos e parceiros criativos do cearense, conjunção que levou aos primeiros ensaios e gravações.
"A gente tentou encontrar oportunidades para viabilizar a existência do filme e começou a agilizar tudo porque a oportunidade se deu", resume Leonardo. "É na junção entre aquilo que é do momento e circunstancial, aquilo que é possível quando se tem um baixo orçamento e o nosso projetocriativo que o filme foi sendo feito. Mas sempre foi assim, gosto de lidar com as circunstâncias, oportunidades, locação, vibração do elenco, para construir personagens, cenas. Tudo nasce numa relação muito grande com a vida", elabora.
"Os desafios e riscos que a gente tomou são muito maiores (em "A Vida São Dois Dias"), ele é ambicioso. Esse filme jamais seria feito se a gente estivesse esperando por edital. Não teve recurso público. A galera colocou a força do próprio trabalho, foi totalmente movido pelo desejo. A gente fez esse filme porque precisou fazer. Ele pode ter a falha que for, mas sempre vai representar esse esforço edesejocoletivo", finaliza.
Sessão + debate de "A vida são dois dias", de Leonardo Mouramateus
Quando: terça, 31, às 19 horas
Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
Quanto: R$ 16 de quarta a segunda e R$ 10 às terças (valores de inteira), à venda na bilheteria e no Ingresso.com
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