"Medusa" busca retratar Brasil pós-impeachment a partir do terror
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
A filmografia da cineasta carioca Anita Rocha da Silveira explora, desde o começo, as possibilidades do terror e do suspense em contextos marcadamente contemporâneos e jovens. No curta "Handebol" (2010), por exemplo, uma partida do esporte-título em um colégio dá vazão, em imagens, a pulsões e crises adolescentes. Já em "Os Mortos-Vivos" (2012), também um curta, a diretora traduz a prática do "ghosting" — o sumiço repentino de alguém com quem se está conversando on-line — a partir do arquétipo do zumbi. Após o elogiado "Mate-me Por Favor" (2015), a cineasta lança "Medusa" nesta quinta-feira, 16, longa que busca refletir sobre machismo, religião e sociedade a partir de um Brasil distópico. Nele, um grupo de meninas religiosas age como gangue.
O fio condutor da história é Mariana (Mari Oliveira), uma jovem que faz parte da comunidade. Ela vai aos cultos, participa de um conjunto musical comandado por Michele (Lara Tremoroux) e busca, inclusive, "orientar" meninas mais jovens para seguirem o mesmo comportamento das fiéis.
Esse "comportamento", na prática, se baseia em uma relação em estilo "vigiar e punir", na qual as próprias integrantes do grupo controlam umas às outras e a si mesmas, bem como desconhecidas. Essas últimas são as vítimas dos ataques físicos e psicológicos que o grupo de religiosas empreende.
As ações em bando das jovens ocorrem à noite, quando elas vão às ruas mascaradas para perseguir, agredir e xingar garotas desacompanhadas. Em um desses ataques, Mariana passa por uma experiência que a leva a uma jornada de descobertas, tanto sobre si mesma quanto sobre a gênese da ação coletiva.
Essa gênese, inclusive, ecoa certa mística que envolve a misteriosa história de um ataque ocorrido há anos e que vitimou uma "desviante". Esse elemento é um dos que ressaltam o lado fantástico e simbólico na obra.
A utilização da roupagem de suspense/terror para tratar de questões reais e palpáveis, em geral, é comum nas linguagens artísticas justamente pelo caráter alegórico que os gêneros trazem. Neste sentido, "Medusa" lança mão de características do tipo para buscar refletir, em algum nível, sobre a realidade que se impôs no País nos últimos anos: a de um embate entre conservadorismo e liberalismo nos costumes.
Apesar disso, o filme parece ecoar mais marcadamente o período pós-impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) e início do governo de Michel Temer (MDB), sob o impacto da mulher "bela, recatada e do lar" — termos utilizados em infame material da revista Veja que trouxe, em 2016, os supracitados ditos para adjetivar a então futura primeira-dama Marcela Temer.
É certo que não é possível "limitar" os fatos e os efeitos deles a um tempo específico — ou seja, é óbvio que o discurso conservador sobre o que "deveria" ser o papel da mulher antecede e sucede o debate sobre a produção da Veja —, mas "Medusa" se ancora de maneira acentuada em aspectos dessa discussão a ponto de parecer feito para o Brasil de então.
Os termos utilizados na publicação há sete anos, por exemplo, são expressos no discurso das personagens. Essa escolha, de alguma maneira, faz "Medusa" parecer perdido no tempo. De fato, o projeto vinha sendo gestado no mínimo desde 2017, como apontam as passagens dele por eventos e iniciativas de desenvolvimento de roteiro em países europeus.
Demarcar temporalmente a obra dessa forma estabelece — ou reforça — uma camada de caricatura naquele contexto. O filme já parte de uma abordagem irônica do conservadorismo — estabelecendo estereótipos em figuras como Michele e o pastor Guilherme (Thiago Fragoso) —, mas opera de forma que retira possibilidades mais multidimensionais das personagens. O simbólico, então, soa raso.
É uma impressão infeliz, uma vez que "Medusa" encontra os melhores momentos quando consegue se abstrair dessa concretude e apostar na criação de atmosfera. Há um bem-vindo nível de artificialidade na construção da realidade proposta, o que estabelece um caráterperformático envolvente, interessado na coreografia dos corpos em tela.
"Coreografia", inclusive, é aspecto que ocorre por vezes de maneira literal no longa. Afinal, o grupo das jovens, por exemplo, atua não somente nos violentos ataques noturnos, mas também em uma espécie de "girl band" que emula elementos de um pop descolado para difundir mensagens religiosas em performances musicais nos eventos da igreja.
Além delas, há ainda o grupo de rapazes da comunidade, denominado Vigilantes de Sião, que têm ares militares e traz gestos coordenados e palavras de ordem. Soma-se ao trabalho corporal ressaltado, ainda, uma constante presença de "performances" realizadas por figuras "libertinas" no decorrer da trama. Cada um desses movimentos corporais e passos, dos de fato artísticos aos gestos ordinários, são demarcados e estudados. Dizem muito mais, e com mais nuances, sobre o "estado das coisas" do Brasil de ontem, amanhã e hoje do que os discursos e elementos diretos.
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