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Com Verónica Valenttino, "A Cidade dos Abismos" derruba o concreto para edificar o subjetivo
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João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.

João Gabriel Tréz arte e cultura

Com Verónica Valenttino, "A Cidade dos Abismos" derruba o concreto para edificar o subjetivo

Partindo de elementos concretos, "A Cidade dos Abismos" propõe construção de alternativas de existência em meio a espaços opressores
Tipo Opinião
A atriz e cantora cearense Verónica Valenttino interpreta Glória no longa
Foto: divulgação A atriz e cantora cearense Verónica Valenttino interpreta Glória no longa "A Cidade dos Abismos"

É curioso que, para uma obra que destaca paisagens marcadamente urbanas, "A Cidade dos Abismos" seja essencialmente um filme que se baseia em uma série de abstrações visuais e narrativas. Dirigido por Priscyla Bettim e Renato Coelho, o longa-metragem parece se impulsionar a partir do concreto — literal, inclusive — da cidade de São Paulo para explorar subjetividades e formas alternativas de existência em espaços opressores.

A trama proposta pelo filme, indicada na sinopse, diz respeito ao encontro fortuito entre Glória, Bia e Kakule. Em uma noite de véspera de Natal, o trio presencia uma morte em um bar decadente e, a partir do fato, uma ligação entre eles é estabelecida. Apesar da menção direta ao tempo em que a trama ocorre, poucos são os elementos que indicam o período de festejos de final de ano além do próprio discurso das personagens.

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Glória, interpretada pela atriz cearense Verónica Valenttino, é uma mulher trans que acompanha, a contragosto, a amiga Maya (Sofia Riccardi) em uma intervenção estética clandestina. Bia (Carolina Castanha) é uma jovem da classe média que sofre por questões afetivas. Kalule (Guylain Mukendi), finalmente, é um imigrante africano que trabalha como atendente do bar.

O espaço é palco do encontro do trio e, também, do crime testemunhado pelos personagens. Tanto o fato em si, quanto o "prólogo" que o antecede e as consequências que surgem a partir dele não são apresentados em um modelo convencional, com narrativa cronológica e dramaturgia clássica.

Não que "A Cidade dos Abismos" traga tempos distintos, confusão entre linhas narrativas ou outros elementos do tipo. A aposta do longa-metragem é em promover espécies de suspensões da concretude, levando a série de segmentos mais fluidos, quase performáticos.

Há, por exemplo, uma sequência na qual Glória é filmada em um plano médio, mirando a câmera, e canta, ou aquela em que o "cirurgião" visitado por ela e Maya engrena em um monólogo que se desloca do tom da cena até ali.

Apesar desses momentos chegarem como "quebras" na construção das cenas, isso não significa, importante reforçar, que a abordagem fora delas seja ancorada em uma noção "naturalista/realista" mais esperada.

O jogo que "A Cidade dos Abismos" propõe parte justamente de uma pretensa roupagem do realismo, mas optando por abordá-lo a partir de um caráter mais próximo do onírico. Do concreto e a dureza da cidade e das situações daquelas personagens, o longa encontra possibilidades de vidas e germinações.

A determinada altura da produção, Bia profere uma frase que, em algum nível, dá conta desse gesto empreendido pela obra: "As cidades não existem, só os encontros são reais". Logo na sequência da fala, entra uma série de imagens de ruas vazias na noite paulistana. O filme, inclusive, traz na própria forma uma qualidade sensorial bastante forte, num sentido quase tátil, que explora texturas, sejam elas as da cidade ou aquelas das próprias imagens.

"A Cidade dos Abismos" tem direção de Priscyla Bettim e Renato Coelho(Foto: divulgação)
Foto: divulgação "A Cidade dos Abismos" tem direção de Priscyla Bettim e Renato Coelho

A aproximação entre os elementos concretos da urbe e a anterior negação da existência daquelas paisagens incorpora a relação entre realidade e fantasia presente em "A Cidade dos Abismos", como que propondo justamente uma nova forma de "dar a ver".

Essa escolha é bem-vinda no sentido em que busca outras formas de olhar para figuras que, por vezes, são limitadas a determinadas características ou vivências por conta de imaginários impregnados, seja na arte ou na própria vida.

Outro momento central do filme que encapsula essa ideia ocorre quando Glória atesta: "Queria despir-me da luta". O que ocorre em "A Cidade dos Abismos" não é uma alienação frente aos problemas e questões concretas — inclusive porque o longa não as ignora e propõe, até, um movimento por justiça.

A luta e o sofrimento não são postos, porém, como elementos definidores e limitadores das vidas de Glória, Bia e Kalule. O trio sofre, luta, mas vai além. Do concreto de estruturas que parecem tão imponentes e inquebráveis, surgem vislumbres de alternativas possíveis que impulsionam, justamente, à construção dessas outras perspectivas. 

A Cidade dos Abismos

  • De Priscyla Bettim e Renato Coelho. 96 minutos
  • Quando: sessões nos dias 21, 23 e 24, sempre às 20 horas
  • Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
  • Mais informações: @cinemadodragao e (85) 3219-5899

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