Documentário "Bem-Vindos de Novo" busca reconstruir afetos ao construir imagens
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Documentário "Bem-Vindos de Novo" busca reconstruir afetos ao construir imagens
Dirigido por Marcos Yoshi, "Bem-Vindos de Novo" traz olhar desconcertante de um filho aos pais e a uma dinâmica familiar marcada por separações e distanciamentos
"Meus pais não me conhecem e eu não conheço eles. Não sei se fazer o filme é o melhor jeito da gente se aproximar", diz o cineasta Marcos Yoshi a determinada altura na narração do documentário "Bem-Vindos de Novo". A partir da obra, o diretor, roteirista e filho lança um olhar desconcertante à relação com os pais e à dinâmica familiar, marcadas por distância e estranhamento desde que Yayoko e Roberto Yoshisaki se mudaram para o Japão e deixaram no Brasil os três filhos — incluindo Marcos, que compartilha uma elaboração sobre a separação de 13 anos dos genitores a partir do cinema.
O título do filme, "Bem-Vindos de Novo", vem do mote que dá partida à elaboração empreendida pelo diretor: o retorno do casal ao Brasil após mais de uma década. Marcos era ainda adolescente quando os pais, descendentes de japoneses, decidiram tentar encontrar melhores condições de vida no Japão.
Neste meio-tempo, cresceu criado pelos avós, tinha contato com os pais mediado por uma comunicação que ocorria em um tempo menos que o atual e se formou em cinema. Com a volta de Roberto e Yayoko, decide usar as ferramentas da linguagem audiovisual para documentar a tentativa de reconstrução afetiva da família.
O desconhecimento sobre os pais assumido por Marcos é mútuo, também sendo abordado por Roberto. Falando de si e da esposa, afirma: "Você não acompanhou. Você não sabe e não conhece os seus filhos. Apenas, nós temos uma ligação consanguínea. Eu sei que você é, eu sei que a Nath é, eu sei que a Tha é minha filha, mas eu não conheço nenhum dos três hoje".
É constantemente desconcertante encarar momentos do tipo por eles configurarem um acessoprofundo a uma intimidade distante e desconhecida. Ao mesmo tempo, aquele contexto tão singular e pessoal adquire, a cada momento, um caráter de comparação e identificação possível com ele.
Ainda que desconcerte quem assiste, o olhar estabelecido por Marcos ao processo de reconhecimento dos pais não é carregado de sentimentos negativos, como rancor ou mágoa. Emoções do tipo aparecem, sim, durante o filme — em especial em conversas entre o diretor e as irmãs, Nathalie e Thayse, que funcionam como espaço de compartilhar memórias e mal resolvidos —, mas despontam mais o esforço e uma intenção quase curiosa do cineasta em alinhar o processo emocional à construção do próprio longa.
Em diferentes momentos, Marcos estabelece em "Bem-Vindos de Novo" uma série de relações entre "ser um bom filho e fazer um bom filme". Ao mesmo tempo em que elabora questões específicas do próprio contexto, o diretor também abre espaço para um pensamento consciente sobre a produção da obra, efetuando reflexões que dizem respeito a tema e forma.
A relação entre os pais e os filhos se desenvolveu a partir da produção de imagens: os genitores mandavam às crianças fotos impressas com recados escritos à mão na parte de trás, enquanto os irmãos gravavam espécies de vídeos-diários para compartilhar notícias do próprio crescimento.
Essa troca tanto estabelece um amplo acervodoméstico que é aproveitado no filme, quanto propicia momentos de reflexão sobre a construção de discursos pela imagem. Em uma das fotografias enviada aos filhos, o casal compartilha de maneira positiva um fato sobre o trabalho que fazem no Japão. Já de volta ao convívio no Brasil, Roberto assume que a situação era mais difícil do que o registro fez parecer: "Tudo que coloca ali na fotografia é baboseira", define.
A reflexão é ecoada nas próprias imagens feitas por Marcos após os pais retornarem para casa. Apesar delas não revelarem nada diretamente, o diretor diz na narração que a empreitada profissional dos pais na volta ao Brasil, no ramo da culinária, não estava dando os frutos esperados. "Durante as filmagens, meus pais evitavam falar dos problemas do restaurante, mas bastava desligar a câmera para o assunto vir à tona", resume o cineasta.
O dito e o não dito, o mostrado e não mostrado, são temas que se impõem em "Bem-Vindos de Novo", seja na relaçãointerpessoal dos retratados, seja na própria feitura do documentário. Em dois momentos-chave dessa imbricação, tanto Yayoko quanto Roberto são mostrados em momentos de emoção dolorosa.
Confira o trailer de "Bem-Vindos de Novo":
No primeiro, a mãe de Marcos fala de problemas pessoais e, começando a chorar, pede ao filho: "Não filma, não". Uma tela preta, então, se sucede à cena, em uma forte escolha de direção. Já quando é o pai do cineasta a se emocionar, em um rompante após uma briga, a opção difere.
Na narração, Marcos começa: "Nesse momento, não sabia se continuava a filmar ou não. Nunca tinha visto meu pai desse jeito". A tela preta sucede a imagem do choro paterno, mas o diretor segue na voz em off e oferece um bem-vindo compartilhamento do próprio processo — tanto o pessoal, quanto o profissional.
"Fico constrangido. Pensei bastante se colocava esse momento no filme, até que entendi que talvez seja justamente essa imagem que quero ter do meu pai: a imagem de um homem vulnerável", justifica. "Bem-Vindos de Novo" não aposta na conciliação ou na romantização, mas aproveita o desalinho e o desconforto para criar — seja um filme, seja algum nível de pacificação.
Bem-Vindos de Novo
De Marcos Yoshi. 105 minutos
Quando: sessões nos dias 18, 20 e 21, sempre às 20 horas
Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema)
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