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Expor virou regra e privacidade é exceção
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A psicanalista Claudia Molinna é também advogada, especialista em Direito Penal e Médico. Foi uma das primeiras Delegadas da Mulher no Brasil e fundadora da tropa de elite da Polícia Civil de Pernambuco, o GOE - Grupo de Operações Especiais. Atualmente, é vice-presidente da Associação dos Delegados e Delegadas da Polícia Civil do Estado de Pernambuco

Cláudia Molinna comportamento

Expor virou regra e privacidade é exceção

Compartilhar deixou de ser escolha livre e se tornou, em muitos contextos, exigência. Uma viagem só existe quando publicada, enquanto um relacionamento só começa quando aparece no feed
Imagem ilustrativa de apoio. Exposição e redes no mundo atual (Foto: Samuel Setubal)
Foto: Samuel Setubal Imagem ilustrativa de apoio. Exposição e redes no mundo atual

Durante séculos a privacidade foi entendida como um direito natural, um espaço protegido onde cada pessoa podia se resguardar do olhar externo. Hoje esse conceito parece cada vez mais distante.

Redes sociais, aplicativos de mensagem, câmeras em todos os cantos e a lógica da hiperconectividade transformaram a exposição em norma social. A vida privada não é mais um território protegido e passou a ser mercadoria, espetáculo e até critério de pertencimento.

Compartilhar deixou de ser escolha livre e se tornou, em muitos contextos, exigência. Uma viagem só existe quando publicada, enquanto um relacionamento só começa quando aparece no feed.

Até momentos íntimos, como refeições em família ou rituais de autocuidado, são exibidos em vídeos e fotos moldados pela estética do consumo. Quem não expõe é visto como suspeito, antiquado ou até invisível. A privacidade virou exceção associada ao isolamento, quando deveria ser parte essencial da liberdade.

Pesquisas reforçam essa tendência. Segundo a TIC Kids Online Brasil 2023, 88% das crianças e adolescentes entre 9 e 17 anos já possuem perfil em redes sociais, número que chega a 99% entre os mais velhos. Ou seja, a exposição começa cedo, muitas vezes antes mesmo de amadurecimento emocional ou consciência crítica sobre riscos digitais.

No campo internacional, um estudo chamado You are your Metadata mostrou que metadados como localização, tipo de dispositivo e horários de acesso permitem identificar usuários com alta precisão, mesmo sem que publiquem conteúdos sensíveis.

Isso significa que não é apenas o que mostramos, mas também o que deixamos registrado de forma indelével, que ameaça a privacidade.

O impacto vai além da esfera individual. A perda da privacidade afeta relações humanas, produz ansiedade e gera uma sensação permanente de vigilância. Jovens crescem sem experimentar o que significa ter uma vida reservada.

Adultos se adaptam a viver sob exposição contínua, muitas vezes sem refletir sobre os riscos. O direito ao anonimato e ao silêncio fundamentais para a saúde psíquica se esvaem, em meio a tanta pressão por visibilidade.

Diante desse quadro é urgente repensar os limites da exposição. Resgatar a privacidade não significa negar a vida digital, mas recuperar o poder de escolha.

É possível estar conectado, sem transformar cada detalhe em espetáculo. Significa criar espaços de intimidade, cultivar relações fora das telas e assumir que nem tudo precisa ser compartilhado.

A privacidade não deve ser tratada como nostalgia. Ela é parte da dignidade humana, condição para autonomia e reflexão crítica. Se a regra atual é se expor para existir, talvez o maior ato de resistência, até mesmo revolucionário, seja guardar para si aquilo que nos faz únicos.

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