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Telas e infância: o impacto e a urgência de reconectar com o mundo real
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Vladimir Nunan é CEO da Eduvem, uma startup premiada com mais de 20 reconhecimentos nacionais e internacionais. Fora do mundo corporativo, é um apaixonado por esportes e desafios, dedicando-se ao triatlo e à busca contínua pela superação. Nesta coluna, escreve sobre tecnologia e suas diversidades

Vladimir Nunan tecnologia

Telas e infância: o impacto e a urgência de reconectar com o mundo real

Neste artigo, exploramos evidências científicas sobre os impactos do uso excessivo de telas no desenvolvimento infantojuvenil, destacando as consequências cognitivas, sociais, motoras e emocionais
Script usado: child, computer screens, cell phone, hyperconnectivity, Photography, Shot on 70mm, Depth of Field, Canon EOS camera, extremely detailed textures --ar 16:9 --v 7.0 (Foto: Imagem gerada por Inteligência Artificial (script próprio): Midjourney)
Foto: Imagem gerada por Inteligência Artificial (script próprio): Midjourney Script usado: child, computer screens, cell phone, hyperconnectivity, Photography, Shot on 70mm, Depth of Field, Canon EOS camera, extremely detailed textures --ar 16:9 --v 7.0

Vivemos na era da hiperconectividade. Crianças e adolescentes são expostos às telas desde os primeiros meses de vida, crescendo imersos em conteúdos digitais que prometem entretenimento, educação e socialização.

Mas à medida que o uso de telas se intensifica, neurocientistas, pediatras, educadores e psicólogos começam a acender alertas sobre os efeitos dessa exposição precoce e prolongada no cérebro em desenvolvimento. Afinal, o que está em jogo é a arquitetura mental que sustenta a transição do cérebro infantil para o cérebro adulto.

Neste artigo, exploramos evidências científicas sobre os impactos do uso excessivo de telas no desenvolvimento infantojuvenil, destacando as consequências cognitivas, sociais, motoras e emocionais.

Mais do que apenas criticar o ambiente digital, também apresentamos soluções e alternativas com base em práticas bem-sucedidas ao redor do mundo. O objetivo é claro: devolver às crianças o direito de viver plenamente no mundo real.

O cérebro em formação: por que a infância é uma janela crítica?

Do nascimento até os 21 anos, o cérebro humano passa por intensas fases de neuroplasticidade, que é a capacidade de formar e reorganizar conexões sinápticas em resposta a experiências. Nos primeiros anos de vida, esse processo é guiado por estímulos sensoriais, motores, sociais e afetivos.

Segundo o neurocientista Álvaro Pascual-Leone, da Harvard Medical School, os circuitos cerebrais mais básicos são moldados nas primeiras experiências como o toque, a fala, a brincadeira e a interação. Essa base influencia o desenvolvimento futuro de funções mais complexas como pensamento abstrato, empatia e autorregulação.

A exposição excessiva a estímulos digitais, especialmente os de alta velocidade e baixa exigência cognitiva, como vídeos curtos, jogos repetitivos e aplicativos de recompensa imediata, interfere nesse processo de maturação. Isso não é uma hipótese. Há décadas, a ciência investiga como o ambiente influencia o desenvolvimento cerebral, e agora os efeitos das telas ganham evidência concreta.

O que a ciência diz sobre o impacto das telas?

Atrasos na linguagem e no desenvolvimento cognitivo: um estudo publicado no periódico JAMA Pediatrics, em 2019, com mais de 2.400 crianças canadenses, mostrou que o tempo de tela em excesso entre 2 e 3 anos de idade estava associado a atrasos significativos no desenvolvimento de linguagem, habilidades motoras e socialização aos 5 anos.

O estudo utilizou avaliações clínicas padronizadas e controlou variáveis como nível socioeconômico e educação parental.

Outro estudo, conduzido por Hirsh-Pasek e equipe em 2015, revelou que crianças aprendem melhor novas palavras em interações humanas reais do que em vídeos interativos. A chamada "ilusão de aprendizagem" promovida por aplicativos educativos muitas vezes engana pais e educadores.

Déficit de atenção e impulsividade: o aumento de diagnósticos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) levanta suspeitas sobre fatores ambientais.

Um estudo da Universidade de Alberta, em 2018, acompanhou 2.500 crianças e concluiu que aquelas com mais de duas horas diárias de tempo de tela tinham maior probabilidade de apresentar sintomas compatíveis com TDAH aos 5 anos.

A explicação neurológica envolve o sistema dopaminérgico. Jogos e vídeos rápidos liberam dopamina em excesso, reforçando o comportamento impulsivo e dificultando a construção de atenção sustentada, que é uma habilidade essencial para o aprendizado.

Alterações no sono: a luz azul das telas suprime a melatonina, hormônio responsável pela regulação do sono. O resultado é um ciclo vicioso em que crianças e adolescentes dormem menos, acordam mais cansados e com menor capacidade cognitiva.

O estudo Sleep in America Poll, de 2014, conduzido pela National Sleep Foundation, revelou que 72% dos adolescentes dormem menos de 8 horas por noite, que é o mínimo recomendado para essa faixa etária. O uso de telas à noite foi o principal fator associado à redução da qualidade do sono.

Comprometimento das habilidades sociais e empatia: a interação digital reduz o tempo de convivência presencial, limitando a capacidade de ler expressões faciais, captar tons de voz e interpretar emoções. Essas competências são desenvolvidas nas interações humanas.

Um experimento de 2014 da Universidade da Califórnia expôs crianças de sexto ano a cinco dias sem telas em um acampamento. O grupo apresentou melhora significativa na capacidade de reconhecer emoções em rostos humanos, evidenciando o impacto do afastamento das telas sobre as habilidades socioemocionais.

Uma epidemia global

O uso excessivo de telas é um fenômeno mundial. Segundo dados da Unesco e da Common Sense Media: crianças de 0 a 2 anos nos Estados Unidos passam em média 49 minutos por dia em dispositivos móveis. Em 2011, esse tempo era de apenas 5 minutos.

Adolescentes entre 13 e 18 anos passam, em média, mais de 7 horas por dia em atividades de lazer digital, sem contar o tempo escolar.

No Brasil, dados do IBGE indicam que 88% das crianças de 10 anos já têm acesso à internet e mais de 60% acessam diariamente.

A pandemia de covid-19 agravou ainda mais esse cenário. As aulas remotas e o isolamento social aumentaram o tempo de exposição às telas e diminuíram o contato físico e emocional com outras crianças.

O que está em jogo: a transição para o cérebro adulto

Como resume o neurocientista francês Michel Desmurget em seu livro "A Fábrica de Cretinos Digitais", o cérebro de uma criança não é uma miniatura do cérebro adulto. Ele está em processo de construção. E esse processo depende fundamentalmente das experiências reais que a criança vive no mundo físico, com o corpo em movimento, com os sentidos alertas e com o outro presente.

Desmurget alerta que a substituição do mundo real pelo virtual impede a aquisição de estruturas mentais complexas, empobrece a linguagem, reduz a criatividade e compromete a construção de autonomia.
Não se trata apenas de tempo de tela. Trata-se da qualidade das experiências que estão sendo substituídas.

A importância do mundo real: corpo, natureza, afeto

A neurociência contemporânea mostra que as experiências corporais, sensoriais e afetivas são os verdadeiros alicerces do desenvolvimento infantil.

Movimento e coordenação motora: brincar, correr, pular e explorar o ambiente com o corpo contribui para a maturação do cerebelo e do córtex motor. Segundo a American Academy of Pediatrics, o movimento livre é essencial para a organização espacial, lateralidade, equilíbrio e memória motora. Todas essas são habilidades cruciais para o aprendizado escolar.

Natureza e saúde mental: estudos da Universidade de Illinois demonstraram que o contato regular com a natureza está associado à redução da ansiedade, melhora da atenção e aumento da criatividade em crianças.

A teoria do déficit de natureza, proposta por Richard Louv, sustenta que a ausência de vivências naturais provoca sintomas semelhantes aos de transtornos psicológicos modernos. Crianças privadas de natureza tornam-se mais ansiosas, agressivas e menos resilientes.

Convívio social presencial

Segundo Lev Vygotsky, o desenvolvimento ocorre na interação com o outro. O brincar compartilhado, os pequenos conflitos, o cuidado mútuo e a empatia são experiências vividas no tempo real. Essas experiências não podem ser digitalizadas.

O que fazer? Soluções práticas para pais, escolas e governos

Definir limites saudáveis de tempo de tela

As principais recomendações internacionais da AAP, OMS e da Sociedade Brasileira de Pediatria indicam:

  • De 0 a 2 anos: nenhum tempo de tela, com exceção de videochamadas com familiares.
  • De 2 a 5 anos: até 1 hora por dia, com supervisão.
  • De 6 a 12 anos: até 2 horas por dia para lazer digital.
  • Para adolescentes: uso equilibrado, com foco na qualidade do conteúdo.

Substituir, não apenas restringir

É necessário oferecer alternativas de qualidade, como jogos ao ar livre, esportes, música, arte, leitura compartilhada, jardinagem e passeios em família. A criança precisa viver a plenitude do mundo real.

Educação digital crítica

Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de educar para o uso consciente. Crianças e adolescentes devem aprender sobre algoritmos, vício digital, manipulação de dados e práticas saudáveis de navegação online. Essas são competências essenciais para o século XXI.

Escolas como ambientes sensoriais e relacionais

As escolas devem valorizar o corpo em movimento, os projetos colaborativos e as interações presenciais. O modelo excessivamente digital da educação remota não pode substituir a potência da vivência escolar real.

Políticas públicas de proteção à infância

Países como França e Suécia já legislam sobre o uso de telas em ambientes escolares. A China limitou o uso de jogos online a três horas por semana para menores de 18 anos. É hora de os governos assumirem seu papel na proteção do desenvolvimento cerebral das novas gerações.

Considerações finais: mais presença, menos distração

A infância é um território sagrado. É um tempo de corpo inteiro, de sentidos despertos e de relações profundas. É um tempo em que o cérebro se organiza para o resto da vida.

O mundo digital pode ser fascinante, mas não pode substituir o brincar na terra, o olhar nos olhos, o correr na chuva ou o colo dos pais. Como afirmou o psiquiatra Içami Tiba, crianças precisam de raízes antes de asas.

Todos os fenômenos que a criança vivencia no mundo real, como os conflitos, os afetos, os cheiros, os sabores, o tédio, os erros e as descobertas, são os ingredientes da reconfiguração cerebral que transforma um cérebro infantil em um cérebro adulto.

Portanto, o objetivo não é proibir telas, mas proteger o direito de ser criança. É essencial garantir que ela tenha experiências com o corpo, a mente e o coração. A neurociência confirma o que a intuição já sabia: o cérebro não se forma diante de uma tela, mas nas experiências reais que o moldam todos os dias.

Foto do Vladimir Nunan

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