Na rua de duas casas, no centro da sala, há um piano do fundo do mar
Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais
Na rua de duas casas, no centro da sala, há um piano do fundo do mar
Escreveria sobre a Senador Pompeu, que há tempos deixou o perfil de morada, virou uma rua de negócios. Mas eis que, na sala de uma das duas únicas casas que restaram, está um H.Kohl legítimo, piano alemão resgatado do mar cearense cerca de 70 anos atrás. Afundou quando havia uma guerra mundial. Está vivo, mas o tempo o adormeceu
O convite para entrar aceito e o personagem causam um sobressalto. Está após a porta e antes do longo corredor que cruza a casa. Estaticamente imponente. Divide o espaço com o sofá, uma bicicleta encostada, um aparelho de som, fotos de família e outros pertences caseiros. Na parede, também um quadro antigo com a imagem do Sagrado Coração de Jesus. Mais informações sobre o inesperado e a revelação: aquele é um H.Kohl legítimo. Uma relíquia em pleno Centro de Fortaleza, na sala do imóvel 1.627 da rua Senador Pompeu.
É um piano alemão original. Idade incerta e não sabida. Talvez centenário ou mais que isso, pelos fatos que contam relacionados a ele. Teria cruzado terras e mares até ser fincado, já há alguns anos, no miolo alencarino. Está no centro da sala de uma casa modesta, passando dias em silêncio, inativo. Entre essas andanças e acontecimentos, o H. Kohl sobreviveu a águas profundas, após um naufrágio na costa cearense, à época da 2ª Guerra Mundial. Foi resgatado, restaurado e está vivo, embora adormecido.
É piano só de aparentar, está calado e desafinado de seus acordes. Virou móvel, como uma cômoda. Encosto de porta-retratos, de louças em forma de anjos, bibelôs e adornos. Acima dele está a foto do coronel João Batista de Sousa Brandão, que pagou por ele, talvez se remoendo ao ver o uso atual.
Por ele que a pauta virou, como dizemos no jargão do jornalismo. Foi-se a ideia de escrever sobre a rua de apenas duas casas em 14 quarteirões, que há anos é endereço de lojas, clínicas, lanchonetes, borracharias, farmácias, ambulantes, todo tipo de comércio e serviço e quase nenhuma residência. Onde mais vendem do que habitam. A presença de um piano naquela sala foi arrebatador. Um protagonista de outras épocas, outras paragens, abrigado num ambiente despretensioso.
Conservado em bom estado, madeira maciça, verniz fechado, entalhes nas colunas laterais — só uma das teclas não seria original. Na tampa que protege o teclado, abaixo do nome do fabricante, os dizeres “Kaiserlich und königlich Hof piano forte fabrik” (tradução: “Fábrica imperial e real de pianos da Côrte”). É o slogan da empresa H.Kohl, que foi sediada em Hamburgo, berço de grandes musicistas. A firma teria sido apadrinhada e prestigiada pelo império austro-húngaro, que existiu brevemente entre 1867 e 1918.
(Que mãos passaram por aquele piano? De onde vinha, aonde iria? Quem foi e quem seria seu dono antes do naufrágio, antes de chegar numa casa do Centro de Fortaleza? )
O H.Kohl “conterrâneo” está há cerca de 70 anos naquela via central que, por quase dois quilômetros — trecho entre as avenidas Leste-Oeste e Domingos Olímpio — restou-se tomada pelos endereços comerciais. Além do imóvel 1.627, apenas o 1.631, com quem é geminado, ainda são casas usadas como residências. Já quiseram comprá-las, confirmam as proprietárias. Ambas têm cerca de quatro metros de frente e se estendem por meio quarteirão em comprimento. Outras moradas da rua no mesmo trecho são apenas quitinetes.
O piano está sob o teto de uma família de músicos, de raízes pernambucana e cearense, um deles muito renomado. Dona Fátima Brandão, 72 anos, é sobrinha-neta do maestro, compositor e pianista Mozart Brandão, nascido em Recife e radicado desde a infância em solo cearense, um virtuoso da música clássica brasileira.
Foi o avô dela, o coronel João Batista de Sousa Brandão, pai de Mozart, quem adquiriu o instrumento na década de 1950. Flautista e pianista, ex-maestro da banda de música da Polícia Militar do Ceará, ex-prefeito por nomeação e delegado idem de algumas cidades do Interior, como Camocim e Aracati, foi assim que teria se aproximado do piano naufragado.
Brandão teria sido informado da carga que estava no navio afundado nas águas entre Aracati e Natal (RN). O episódio foi pouco antes do fim da 2ª Guerra. Fátima não lembrava o nome da embarcação. Havia mais objetos disponíveis, mas o encantamento dele foi pelo piano. Manifestado formalmente o interesse pelo item, ela diz que o tio-avô pagou tributos e taxas federais, estaduais e municipais e resgatou o H.Kohl para casa.
Dona Fátima não sabe datas precisas de quando o instrumento chegou à Senador Pompeu. A casa era recém-adquirida. Teria sido na época da gestão Menezes Pimentel, que foi governador do Ceará (como eleito e como interventor nomeado por Getúlio Vargas) de 1935 a 1950. “Minha tia (Maria de Jesus, filha dele, 89, convalescente) me disse que ele chegou a pedir autorização ao governador para comprar o piano”.
João Batista morreu em 1985. Tinha 94 anos. Estava indo de casa para a missa na Igreja do Carmo quando foi atropelado. Mozart Brandão, como dona Fátima confirma, já era conhecido nacionalmente quando o pai arrematou o piano. Morava no Rio de Janeiro. Teria deixado suas digitais algumas vezes naquele teclado, segundo ela. Ele morreu em 2006, aos 85 anos.
É a história que vem sendo reproduzida pela oralidade na biografia familiar. Contada e recontada entre as gerações. Não sabem exatamente onde estariam os poucos registros documentais dessa epifania. Os detalhes vão se desgarrando. Tia Maria de Jesus, segundo dona Fátima, lembra e deslembra desses momentos. Ela e o tempo.
A família não deu certezas sobre o navio naufragado que transportava o piano. Pela localização citada por dona Fátima, o tenente-coronel Gustavo Augusto de Araújo Chaves Pereira, historiador do Exército e assessor cultural da 10ª Região Militar, deu indicações. Teria sido o navio Siqueira Campos, que declinou em 1943 no mar de Aracati. Havia uma guerra mundial em andamento.
A embarcação viajava de Recife a Fortaleza. Estava em comboio com o navio Cuiabá e sob escolta dos navios caça-submarinos Juruá e Jaguarão. Navegavam a 500 metros de distância um do outro. Temia-se por ataques das forças do Eixo (Alemanha-Itália-Japão), havia registros anteriores naqueles dias bélicos. Aquela seria a última pernada da viagem até a capital cearense, segundo o historiador.
O Siqueira Campos seria um navio considerado misto, de carga e passageiros. Havia sido fabricado na Alemanha em 1907 e teve um primeiro nome de batismo: Gertrud Woermann.
Na noite de 24 de agosto, sob ventos intensos e águas agitadas, um sentinela teria se precipitado e avisado pelo rádio do ataque de um suposto submarino alemão. Foi o suficiente para o pânico e o desfecho de manobras arriscadas e desastradas dos comandantes. Próximo da costa de Aracati, Cuiabá e Siqueira Campos se chocaram.
O primeiro seguiu com avarias até o porto de Fortaleza; o segundo, com o casco muito danificado, afundou alguns dias depois na praia de Uruaú, próximo a Beberibe (ainda teriam tentado seguir a rota até a Capital). Os U-bouts alemães não estiveram no percurso naquele dia. Mas sobrou pelo menos um piano.
Da rua Senador Pompeu, naquele último pedaço com casas, também resta a deterioração do entorno. Adriana Nascimento, 48 anos, é a vizinha de dona Fátima. Não quis ser fotografada, permitiu a imagem da fachada. Mora há 40 no local, sua mãe, já falecida, chegou ainda jovem ao endereço.
Relembra que brincava por perto, havia outra aura. Hoje há lixo, mato, piso solto, insegurança, falta de iluminação pública, população de rua debaixo de tábuas e papelões na praça Clóvis Beviláqua. São os outros vizinhos — sem sorte, em tetos indignos. “Quando chega por volta de cinco e meia, seis da tarde, já fica tudo deserto, vazio, principalmente fim de semana”, lamenta Adriana.
O piano é a poesia derradeira de uma rua descuidada, de lares que vão se apagando.
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