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Trapalhadas e xeretagens dos espiões cearenses
Foto de Cláudio Ribeiro
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Desde 1991, atua nas redações dos principais jornais cearenses. Trabalha no O POVO desde 1995. Passou pelas editorias Cidades (como repórter e editor), Ciência & Saúde (repórter), editor de Primeira Página, Núcleos de repórteres especiais e de Jornalismo Investigativo e Núcleo Datadoc, de jornalismo de dados. Hoje, é repórter especial de Cidades. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, incluindo nacionais e internacionais

Trapalhadas e xeretagens dos espiões cearenses

Nos papéis da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), nossos agentes "secretos" cometiam lambanças, xeretavam banalidades. Os arapongas queriam mostrar serviço olhando tudo e todos. Teve muito disso naquela ditadura
Entrada do prédio da Polícia Civil, no Centro de Fortaleza, que sediou a Delegacia de Ordem Política e Social (Foto: JORGE HENRIQUE, em 16/11/1985)
Foto: JORGE HENRIQUE, em 16/11/1985 Entrada do prédio da Polícia Civil, no Centro de Fortaleza, que sediou a Delegacia de Ordem Política e Social

Era 22 de janeiro de 1965, antes de completar o primeiro dos longos 21 anos de tempo trevoso. Era ditadura. O "Informe" do comissário de apenas dez linhas, datilografado talvez numa Remington, pareceu ter sido feito para mostrar serviço ao chefe. Tamanha era a banalidade, desimportância.

Porém, no alto da folha em papel timbrado, ao lado do brasão do Estado do Ceará, destacava o termo: "R_e_s_e_r_v_a_d_o". E o órgão em letras garrafais: "DELEGACIA DE ORDEM POLÍTICA E SOCIAL".

O dito "agente" do DOPS relata que "num dos ônibus que faz a linha do bairro Floresta", do lado oeste de Fortaleza e à época habitado principalmente por operários e ferroviários, "um de nossos auxiliares" (talvez informante, não dava nome) havia colado numa conversa alheia.

Teria conseguido ver e ouvir dois "fichados e prontuariados na seção competente desta DOPS (o documento cita os nomes, opto por não informar), os quais conversavam sôbre Juscelino K. de Oliveira e as casas em que residem". Não ficou claro por que evitou escrever Kubitschek.

O documento prossegue - supostamente com apurações encaixadas posteriormente: "Procurando se inteirar do que de real se passava com as casas da Vila da RVC, veio a saber que êles têm prazo marcado para desocupar as mesmas, pois vão ser vendidas a funcionários da Rffsa e êles não têm direito à compra das citadas casas. Foi só o que soube o auxiliar".

RVC fôra a Rede de Viação Cearense, ex-gestora das ferrovias locais depois incorporada pela federal Rffsa. Os dois passageiros aproveitavam a viagem no ônibus para assuntar sobre vida comum, preocupação com suas moradas. Mas o tal informante achou suspeito, repassou e o agente endossou. O nome do comissário também está poupado, pelo equilíbrio dos anonimatos.

Qual terá sido o desfecho de um relatório tão vazio? Muitas vezes foi assim. Um "agente", "comissário", "investigador", ou como estivessem empregados, era "designado para acampanar 'fulano de tal' secretamente", alguém tachado de "subversivo", "comuna", "fichado", "vermelho". São expressões e termos encontrados nos papéis do acervo maldito da DOPS Ceará.

Registro da conversa banal de dois passageiros num ônibus em Fortaleza virou "Informe reservado" de araponga da DOPS (Foto: ACERVO ARQUIVO PÚBLICO DO CEARÁ)
Foto: ACERVO ARQUIVO PÚBLICO DO CEARÁ Registro da conversa banal de dois passageiros num ônibus em Fortaleza virou "Informe reservado" de araponga da DOPS

Página infeliz de nossa história, mas que é importante folhear, revisitar, apesar de tantas dores. Nos conta sobre tensões que "golpe" e "ditadura" lançam às situações rotineiras mais simples. Está bem guardada no Arquivo Público do Ceará (APCE), no Centro da Capital.

Por qualquer coisa surgia uma comunicação no expediente da temida Delegacia. Para dar peso, carimbavam como "secreto", "sigiloso", "reservado", "confidencial".

Esses informantes eram mazelas. Estava em todo canto. Um deles "teve a sua atenção voltada para um bate-papo de duas senhoras" passageiras "em ônibus da linha do Benfica" que ia para o Centro.

As duas comentavam e davam o nome de dois "comunistas fichados" que continuavam como "chefe" e "alto funcionário", em uma repartição de assistência médica. E logo virou um relatório de duas páginas que chegou às mãos do então chefe da DOPS, João Quariguasi Frota Sobrinho (morreu em dezembro de 1979, quando era deputado estadual).

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Rumores tornavam-se conspiração. Eles detestavam a alcunha de araponga, referência à ave estridente. O apelido dado aos espiões brasileiros foi justamente porque alguns deles não sabiam passar despercebidos. Atabalhoados muitas vezes, segundo o acervo do Dops.

O espião xereta nem escondeu seu caderninho 

Três dias antes, o mesmo comissário havia contado de outra barbeiragem em documento. Um colega dele, agente, achou que não estava sendo notado quando tentou xeretar a roda de conversa de três jornalistas e mais três que se chegaram, em frente a uma loja da rua do Ouvidor - hoje rua Guilherme Rocha. Era cedo, por volta das 9h30min. Entre aqueles, um jornalista estava sendo vigiado havia dias - há vários relatórios sobre isso no Fundo DOPS.

Mas foi o xereta se encostar, o grupo se dispersou (porque já teriam notado a arapongagem acontecendo) e um dos homens lhe perguntou diretamente, sem delongas: "por qual motivo e da ordem de quem foi prêso o jornalista (cita o nome de um radialista que havia sido detido)".

"Antes que o agente respondesse, e estando com um papel na mão em que anotava os movimentos de 'fulano'(o jornalista vigiado)", um daqueles homens "tentou arrebatar o papel da mão do agente no que foi evitado por êste". Nem o cuidado de disfarçar o caderninho de espião ele teve.

O jornalista e o amigo corajoso saíram e seguiram para o Clube dos Advogados. A trapalhada foi confirmada no informe ao chefe: "Desconfiando tivesse sido percebido, o agente (nome) tratou também de tomar seu rumo, deixando o agente (outro) no encalço dos citados elementos".

Os agentes levaram um drible e lhes fecharam a porta

Num outro caso risível, pula para agosto de 1980, a ditadura já com 16 anos e cheia de culpas, torturas, mortes e prisões políticas cometidas. Outros dois desses arapongas, do Serviço Estadual de Informações (SEI), quiseram acompanhar a palestra "Crise Nacional e Constituinte", na sede da Associação Cearense de Imprensa (ACI), promovida pela ala Tendência Popular de um PMDB de outra época. Mas levaram um drible seco.

Eles chegaram a subir até o 4º andar, elevador com ascensorista e porta pantográfica (aquela sanfonada). Lá, foram informados que o debate não seria às 18h30min (hora verdadeira), mas só às 20h (hora falsa). Os agentes decidiram descer e aguardar a hora avisada.

Quando tentaram acessar o prédio outra vez, "o portão da entrada encontrava-se fechado com cadeado". E um funcionário lhes disse que só entraria quem estivesse autorizado. "Não foi possível de forma nenhuma o acesso dos agentes ao local do debate em referência", descreveu o documento de duas páginas. Restou registrarem presenças, mas sem saber o teor da discussão.

Havia um bordel no meio da investigação

Até bordel, na Praia de Iracema, passou por campana, quando a "investigação em caráter estritamente sigiloso" era seguir uma jovem e seu círculo de amizades. Julho de 1967, quatro agentes, missão de nove dias. Ordem expressa do secretário da Segurança Edilson Moreira da Rocha. O chefe da DOPS nesse tempo era Luiz Coêlho de Carvalho.

Uma das amigas vizinhas da moça investigada foi descrita como "especialista em aliciar casais (cafetina)". Que usaria seu salão de beleza, como "disfarce para coito sexual". E outra vizinha da jovem monitorada foi identificada como "funcionária da Assembleia" e usava também sua casa como "um chatô".

Em 1967, a missão dada aos arapongas foi vasculhar a vida de uma jovem, namorada de um filho de político, mas até o bordel e a vizinhança entraram na investigação(Foto: ACERVO ARQUIVO PÚBLICO DO CEARÁ)
Foto: ACERVO ARQUIVO PÚBLICO DO CEARÁ Em 1967, a missão dada aos arapongas foi vasculhar a vida de uma jovem, namorada de um filho de político, mas até o bordel e a vizinhança entraram na investigação

Uma terceira vizinha recebeu a mesma citação no relatório, de longas cinco páginas. E mais três vizinhas foram mencionadas, todas adjetivadas pejorativamente ("amaziada", "mulher fácil", "desquitada") O documento incluiu fotos, quadros feitos na máquina de escrever, um histórico dos fatos.

O motivo da investigação seria porque a jovem estaria namorando o filho de um político importante da época, com perspectiva de casamento. A mãe dela teria dito aos arapongas que o casório "tinha de acontecer em dezembro" e que estava até contratado um "macumbeiro".

Provavelmente essas senhoras ou o pai de santo acionado teriam posto o governo da época em perigo, não fossem os arapongas. E o dinheiro público custeou essa missão.

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