Imagem comum de um golpe de estado é a de canhões em frente às instituições de poder ou da derrubada do líder via força bruta. Foi assim em 1964, no Brasil, quando as tropas militares chegaram à Presidência e instauraram 21 anos de ditadura no País, com registros de centenas de torturas, censuras e prisões.
No entanto, um golpe não é de geração instantânea. Mesmo no de 1964, grande parte do empresariado, da imprensa, dos proprietários rurais, da Igreja católica, vários governadores, além do governo dos Estados Unidos apoiaram e/ou financiaram a intentona. Havia ainda problemas econômicos e sociais.
A tomada de poder é alimentada aos poucos, conforme defendeu Paulo Gonet, o procurador-geral da República, em 2 de agosto de 2025, durante o julgamento de um ex-presidente por, justamente, tentativa de golpe.
Ao elencar os argumentos da acusação de Jair Bolsonaro (PL) e outros sete aliados, o PGR relembrou que, por fim, o golpe não precisa vir de fora, mas pode entranhar-se nas estruturas de poder para derrubá-las. “Podem ser engendrados pela perversão dela própria”, disse.
O caso de Bolsonaro seria esse, para a acusação: o “inconformismo” com fim do mandato, com a passagem de poder e com a escolha da população, soberana no processo democrático. A recusa em passar o cargo teria gerado uma cadeia de ações para descrédito do sistema do qual o próprio presidente foi, durante toda uma vida pública, funcionário.
Para Gonet, os oito acusados deste primeiro núcleo cooperaram para este fim, ainda que não tenham conseguido chegar na fase “do canhão no Congresso”. Mesmo assim, atentaram contra a democracia, conforme o PGR. Estavam lá todos os sinais: o descrédito ao sistema de votação, a incitação ao clima de “animosidade” pública, a violência física, as ameaças e o planejamento.
Os eventos isolados, segundo a acusação, “nem sempre impressionam sobre o ângulo dos crimes contra as instituições democráticas”. No entanto, vistos em conjunto formam uma narrativa “de ações ordenadas ao propósito do arbítrio e do desbaratamento das instituições democráticas”.
A diferença, no entanto, é que desta vez a democracia tem a chance de “assumir a sua defesa ativa contra tentativa de golpe apoiado em violência ameaçada e praticada”.
E completou: “Se a intentona vence, pela ameaça do poder armado ou a sua efetiva utilização, não há o que a ordem derruída possa juridicamente contrapor”. Ou seja, é possível atestar o nascimento de um golpe, mas depois da consumação dele, não há mais como julgá-lo.
Por mais de um ano antes das eleições de 2022, o então presidente Jair Bolsonaro teria começado uma campanha de descrédito do sistema eletrônico de votação. Em 4 de agosto de 2021, por exemplo, o mandatário alegou, sem provas, que o código fonte das urnas eletrônicas teria sido acessado por um hacker em 2018, o que traria potencial de interferência nos resultados do ano seguinte.
O discurso era retomado constantemente, com ponto-chave no 7 de setembro de 2021. No ato cívico, Bolsonaro incitou a militância diretamente “contra os ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral”.
Logo, de chamadas verbais, passou-se a “manifestações organizadas”, nas quais eram exibidas faixas com pedidos diretos de “intervenção militar”.
“Foi nesse contexto que o presidente Jair Bolsonaro tornou pública no Dia da Pátria a sua recusa em aceitar uma alternância democrática de poder em frases como: ‘Não poderia participar de uma farsa como essa patrocinada pelo TSE’”, narrou Paulo Gonet.
A presença popular integra outro processo da “organização” do golpe: a incitação do povo contra as instituições de poder e, assim, contra a democracia.
As falas públicas de Bolsonaro e apoiadores contra a legitimidade dos meios eletrônicos visavam, segundo a PGR, “animar apoiadores de medidas insurrecionalistas num ambiente de declínio de chances de êxito normal”. Ou seja, já mirando uma derrota eleitoral, era esperado revolta dos apoiadores.
“Pretendia-se que os ânimos populares se voltassem contra o judiciário no seu órgão de cúpula e contra os resultados de derrota nas urnas pressentidos”, alegou o procurador, uma vez, que o golpe precisaria de um “respaldo popular”.
Enquanto publicamente a democracia era ameaçada, os acusados teriam utilizado de aparelhos do Estado para dar sustância ao golpe.
Evidencias disso, segundo a PGR, estariam em registros feitos pela própria “organização criminosa”, em vídeos, escritos, mensagens de WhatsApp, arquivos digitais, planilhas, discursos e depoimentos de integrantes, como o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, que assinou uma delação premiada.
A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) teria sido um destes órgãos, instrumentalizada para a infiltração de agentes nas campanhas eleitorais. O discurso antidemocrático também foi difundido por sistemas de televisionamento público federal e mediante reprodução em redes sociais do réu, também fator importante na disseminação.
Boa parte do Governo sabia. Reunião ministerial ocorrida em 5 de julho de 2022, promovida por Bolsonaro, demonstrou comunicação do plano para ministros e demais figuras do alto escalão do governo e até do exército. Na ocasião, o presidente chegou a acusar o narcotráfico de financiar o adversário Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Conforme o segundo turno do pleito se aproximava, os métodos já utilizados teriam se intensificado, segundo apurado pela PGR. O aparelhamento do Estado foi intensificado com ações como a utilização da Policia Rodoviária Federal (PRF) para mapear regiões nas quais Lula, opositor de Bolsonaro, teria mais votos.
O intuito, que se concretizou, visava criar barreiras artificiais para que “esta população (nordestinos) não conseguisse chegar aos postos de votação”.
Quanto aos ânimos dos apoiadores, estes resultaram em acampamentos, também incentivados e em partes mantidos pelos réus à frente de instalações militares em vários pontos do país.
Não apenas os acusados não fizeram nada para desmontar os grupos, como incentivavam. Mário Fernandes, à época chefe substituto da Secretaria Geral da Presidência, chegou a ir em diversas ocasiões a acampamentos.
Disse Mauro Cid, em delação premiada: "O então presidente sempre dava esperanças de que algo fosse acontecer para convencer as Forças Armadas a concretizar o golpe. Esse foi um dos motivos pelos quais o então presidente Jair Bolsonaro não desmobilizou as pessoas que ficavam na frente dos quartéis”.
Nestes locais, pedia-se explicitamente, via faixas e discursos inflamados, “a intervenção militar”. “Nada diferente de golpe militar”, segundo Gonet. Houve ainda a inserção dos “kids pretos”, militares com formação em forças especiais altamente treinados em “operações de guerra irregular”.
De 2021 a 2023, tudo sempre esteve envolto de incitações à violência explicítica. Em 8 de janeiro do ano posterior às eleições, ela, de fato, ocorreu com mais intensidade.
O 8 de janeiro foi descrito por Paulo Gonet como “balbúrdia urdida”, na qual a população seduzida “pelo discurso de inconformismo com a ordem constitucional passou à ação física”. A ação estaria no horizonte da “organização criminosa” desde, pelo menos, novembro de 2022.
Mais do que isso, os atos antidemocráticos foram considerados nas investigações como “explicitamente uma etapa necessária do desenrolar do golpe, para que se atraísse a adesão dos comandantes do exército e da aeronáutica”.
As evidências ainda apontaram planos de ações mais violentas e até assassinas, como o plano intitulado “Punhal Verde Amarelo”, para assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice presidente Geraldo Alckmin (PSD) e o ministro do STF Alexandre de Moraes.
Segundo a PGR, Bolsonaro estava ciente do plano que, só não deu certo, porque “não aconteceu o ato esperado naquele momento de formalização pública do golpe por decreto do presidente da República - Lula”.
Para a PGR, o golpe só não foi para frente pela falta de adesão de um braço crucial: as forças armadas. Bolsonaro, então líder maior das Forças Armadas, chegou a reunir os chefes do exército, aeronáutica e da marinha para “revelar a estratégia” a ser utilizada pós-eleições.
São eles, respectivamente, Marco Antônio Freire Gomes, o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior e Almir Ganier.
“Repare-se bem que a reunião não se deu para que os comandantes tivessem ciência do grave ato. Não, foram convocados para aderirem ao movimento golpista estruturado”, narrou Gonet. “Basicamente fixava-se que o então presidente da República prosseguiria à frente do governo do país e se impediria a posse e o exercício do cargo pelo candidato que a população escolheu”, completou.
Dos três, somente Garnier, da Marinha, teria aderido ao plano. Os demais foram dissuadidos, dentre outros motivos, “não somente pela pressão difamatória de grupos sociais como também por meio de carta pública de militares conjurando comportamento insurrecionista”.
A decisão de Freire Gomes e Baptista Júnior chegou a ser criticada fortemente pelo então candidato à vice-presidência, Braga Netto. O militar queria “destruir o ânimo legalista demonstrado pelos comandantes da aeronáutica e do exército ao se afastarem das etapas decisivas”, segundo a PGR.
Para o procurador-geral, “não é preciso esforço intelectual extraordinário para reconhecer que, quando o presidente da República e depois o ministro da defesa convocam a cúpula militar para apresentar documento de formalização de golpe de estado, o processo criminoso já está em curso”.
Essa recusa seria um dos principais fatores que diferenciaria a situação presentes de golpes consumados no passado. A outra diferença, no entanto, é que agora há possibilidade de “punir” quem quase conseguiu consumar a ameaça à democracia.
Ao todo, foram três anos. Incitações contra o sistema de votação, “simples” declarações, conseguiram chegar ao patamar de violências físicas e de planos articulados entre diversas áreas do Governo. Um golpe corre enquanto o caminho estiver livre. De novo, sem combustão instantânea.
Mas, para a acusação, ainda não acabou. Antes de qualquer uma dessas acusações, a sustentação oral da PGR salientou o impacto histórico do julgamento. A chance de punir algo. De se estar conseguindo com um cenário de “quase”, de “foi por pouco”. Algo que, em 1964, não houve possibilidade de ser feito.
“A história registra profusão de ensaios destas peças (golpistas). O nosso passado e de tantas outras nações oferecem ilustrações desta última espécie. O inconformismo com o término regular do período previsto de mando costuma ser fator deflagrador de crise para normalidade democrática provocada por seus inimigos violentos”, foi o início do discurso de Paulo Gonet.
Para ele, é preciso focar agora na recriminação, não apenas como forma de punir o que já foi feito, mas evitar que novos casos surjam: “Não reprimir criminalmente tentativas desta ordem, como mostram relatos de fato aqui e no estrangeiro, recrudesce ímpetos de autoritarismo. Nenhuma democracia se sustenta se não contar com efetivos meios para se contrapor a atos orientados a sua decomposição perigosa”.
No julgamento em curso, diversas estratégias e padrões de defesa emergiram no primeiro dia.
Focando na desqualificação de evidências, minimização de ações e contestação da própria natureza das acusações, as defesas evitam jogar a reponsabilidade umas para as outras, sustentando a inocência de cada cliente.
O ponto fora da curva foi justamente a primeira defesa, do delator e ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid.
As teses apresentadas concentram-se em minimizar o papel e a intenção de Cid na suposta trama golpista, bem como em enfatizar sua colaboração com as autoridades.
A sustentação oral começou evidenciando a vida pessoal e a carreira militar do delator antes de qualquer envolvimento com o governo Bolsonaro. Os advogados fizeram questão de enfatizar que toda a colaboração foi voluntária, e em momento algum Mauro Cid foi coagido. Portanto, todas as provas obtidas com a delação são legítimas.
O advogado Jair Alves Ferreira argumentou ainda que a posição de ajudante de ordens "só atrapalhou a vida do Cid".
A defesa também afirmou que Mauro Cid "falou tudo o que sabia", reforçando a postura de cooperação com as investigações, e pediu que os acordos celebrados antes fossem cumpridos, livrando Mauro Cid de uma possível condenação.
Enquanto isso, as outras defesas agiram de forma muito independente. Não houve tentativas de distribuir responsabilidades, apenas afirmar que cada cliente era inocente, tomando por base argumentos diversos.
A defesa do almirante Almir Garnier Santos, por exemplo, pediu pela rescisão da delação de Mauro Cid, alegando a necessidade de identificar provas "independentes" não apontadas pela delação para que permaneçam no processo.
Já o advogado de Anderson Torres, Eumar Roberto Novacki, argumenta que a acusação contra seu cliente é um "ponto fora da curva" e que a Polícia Federal (PF) e o Ministério Público (MP) "não estavam interessados na verdade".
Os advogados de Alexandre Ramagem questionaram o uso de anotações encontradas pela PF, que continham argumentos contra o sistema eleitoral, afirmando que eram apenas um "diário" e que não há provas de que foram entregues a Bolsonaro.
Demóstenes Torres, advogado de Almir Garnier foi o mais incisivo. Ele pediu aos ministros por um "nexo causal individualizado", ou seja, que o processo deixe claro o papel de cada réu.
Torres também questionou se era possível gostar do ministro Alexandre de Moraes, e, ao mesmo tempo, do ex-presidente Bolsonaro. Logo em seguida respondeu: "Sim. Sou eu".
Ex-senador, Demóstenes foi o que falou mais livremente de aspectos não-técnicos na defesa. Ele chegou a afirmar, sem apresentar evidências, que o resultado do julgamento, qualquer que seja, "não vai permanecer" e que "a história vem aí" para uma revisão.
Ausente, Jair Bolsonaro foi citado poucas vezes pelas defesas. O ex-presidente optou por não comparecer ao Supremo Tribunal Federal (STF) na terça-feira, citando "problemas de saúde".
Resta saber se, entre fatos e narrativas, a resiliência da Democracia vai prevalecer uma vez mais.
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