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O laboratório social dos elevadores
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O laboratório social dos elevadores

A gente entra, aperta o botão e, por alguns segundos, convive com espécies raras da fauna urbana, a quem ele dá apelidos, se achando um pilar de sensatez num mundo enlouquecido
Tipo Crônica
Pessoa apertando botão de elevador (Foto: Divulgação/Pexels/MART PRODUCTION)
Foto: Divulgação/Pexels/MART PRODUCTION Pessoa apertando botão de elevador

Dizem que morar em condomínio exige muito jogo de cintura para a convivência com pessoas de diferentes formações. Aquele amigo meu, o machista normal, vive reclamando do condomínio. Segundo ele, o elevador é um laboratório social. A gente entra, aperta o botão e, por alguns segundos, convive com espécies raras da fauna urbana, a quem ele dá apelidos, se achando um pilar de sensatez num mundo enlouquecido.

— Rapaz, tem sempre a tribo dos Jovens de Fone de Ouvido. Nunca olham para ninguém, nem falam nada. Fazem cara de que estão ouvindo algo muito profundo, tipo um filósofo falando sobre a dor da existência. Já desisti de cumprimentá-los. Geração mimada.

Mas todo adolescente é estranho — argumentei. — Você era horrível e ainda fedia.

— Fedia, mas era bem-educado. Pelo menos eu grunhia alguma coisa quando falavam comigo — defendeu-se.

Ele comentou sobre a Feminista da Sacola Ecológica, que nunca desperdiça uma chance de fazer um discurso contra o patriarcado na manutenção dos elevadores, a masculinidade tóxica dos jardineiros que regam as flores só depois das árvores na área da piscina e o lugar de fala das samambaias, que vivem esquecidas no hall de entrada enquanto as orquídeas recebem todos os elogios.

Ela carrega sempre um livro de capa amassada, veste blusas com frases impactantes e já me olhou torto quando segurei a porta do elevador para ela passar. Provavelmente achou um ato simbólico de opressão.

— Tem um sujeitinho magrelo que chamo de Hipster Orgânico. Ele sempre carrega um copo reutilizável e usa um bigode que parece saído de 1920. Só compra produtos naturais e, honestamente, acho que nem usa desodorante. O cheiro dele tá mais pra quem fuma umas coisinhas naturais daquelas estranhas.

Ele também implica com o Casal Fitness.

— Nada contra quem faz exercícios, mas esses dois já entram no elevador comentando quantas gramas de proteína comeram no dia e os índices de sei-lá-o-quê. O rapaz, com aquele sovaco cabeludo, usa regata só pra exibir o bíceps. A moça tá sempre segurando um shake verde, fala sobre calorias como quem discute filosofia e olha com desprezo pra minha barriga.

E há um vizinho que o incomoda de maneira especial.

— Tenho certeza de que aquele ali é um assassino em série ou algo parecido. Tem uns 40 anos, mora com a mãe, camisa sempre impecável, gravata sem paletó, todo arrochadinho feito um Kiko maligno da Dona Florinda. No elevador, fica calado, compenetrado, fazendo minuciosas anotações numa agenda de couro. Com certeza é um plano de esquartejar alguém. O sujeito me dá arrepios.

Daí passou a listar outros tipos: o Fiscal da Vaga, que sabe exatamente quem estacionou fora da linha e manda foto no grupo do condomínio; a Síndica Eterna, uma senhora que, mesmo sem mandato, continua mandando em tudo; o Fantasma do 901, que ninguém nunca viu, mas recebe delivery toda noite. Dizem que as luzes piscam misteriosamente no apartamento e há boatos de que já fez caretas para crianças no pátio.

Tem ainda o DJ da Madrugada, que compartilha seu gosto musical com o prédio inteiro, especialmente depois das 23h; a Dona das Gatas, que tem pelo menos seis felinos, todos já fugiram pelo corredor alguma vez, e cujas roupas sempre têm pelos; o Chef de Fumaça, que todo fim de semana faz um churrasco na varanda e enche o prédio inteiro de fumaça e cheiro de carne – já causou pelo menos três discussões com vizinhos veganos; a Fofoqueira do Térreo, que sabe da vida de todo mundo e circula no condomínio como se fosse uma repórter investigativa; o Senhor Reclamação, que sempre acha algo errado; o Casal de Briga Alta, que transforma o prédio num reality show de barracos; e o Maluco da Sacada, que faz yoga, canta mantras e encara a lua como se ela fosse responder.

Mas o mais intrigante aconteceu outro dia. Ele saiu do elevador e, quando a porta estava quase fechando, ouvi um dos vizinhos perguntar:

— E aquele ali?

E então, rindo, alguém respondeu:

— Ah, esse? Esse é o Machista Normal. Todo prédio tem um doidim desses.

Por um instante, esperei que ele comentasse. Mas ele apenas sorriu, ajeitou a camisa e concordou com a cabeça.

— Pelo menos alguém nesse prédio tem juízo.

Foto do Danilo Fontenelle

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