
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Tenho um amigo muito católico. De vez em quando, ele me conta a história de um santo — sempre tentando, de forma meio infrutífera, me edificar espiritualmente. Quer me inspirar moralmente, como quem planta uma semente de conversão.
Essas histórias — chamadas hagiografias (do grego hágios, santo, + graphía, escrita) — costumam narrar a vida, os milagres, os sofrimentos (muitas vezes martírios) e as virtudes de pessoas reconhecidas como santas pela Igreja, especialmente pela Católica e a Ortodoxa.
São repletas de episódios em que o santo demonstra caridade, devoção, persistência diante das tentações, humildade, estudo, cuidado com os pobres, simplicidade, compreensão e, quase sempre, uma bondade desarmante. Isso sem falar nos milagres atribuídos a eles por intercessão divina.
Às vezes, a Igreja acrescenta uma qualidade a mais: a de ser patrono de uma profissão ou atividade. Um santo se torna padroeiro de um ofício, lugar ou grupo por associação simbólica, histórica ou até mesmo popular. Nem sempre é um processo formal.
A maneira mais comum de associação acontece quando o santo viveu algo relacionado àquilo que passa a proteger. São Lucas, por exemplo, é padroeiro dos médicos porque, segundo a tradição, ele mesmo era médico. Santa Bárbara, que foi trancada em uma torre, virou padroeira dos bombeiros — associada à proteção contra fogo e raios. Há também os casos em que o povo começa a invocar um santo para determinada causa e isso "pega", mesmo sem chancela oficial, como São Longuinho — cuja existência histórica é incerta, mas que é lembrado toda vez que se perde alguma coisa.
Em 1980, por exemplo, o Papa João Paulo II declarou São Francisco de Assis como padroeiro da ecologia, formalizando algo que já fazia sentido no imaginário popular.
Esses são os santos com nome nos altares, oficiais ou populares. Mas também existem os santos anônimos, ainda encarnados, que não sabem que são santos — mas fazem coisas santificadas. Esse meu amigo até se parece e age como um, mas nem posso falar isso que ele me excomunga de vez.
Outro dia encontrei uma dessas santas sem altar. Bastaram duas frases e alguns gestos para que ela revelasse, ali mesmo, no cenário mais banal possível, aquelas qualidades que costumam levar alguém a ser venerado. Mas não foi com visões, êxtases ou estigmas. Foi, talvez, com algo mais raro: um momento genuíno de união com o outro — o tipo de união que, quem sabe, só pode vir de Deus.
Essa mulher mostrou, em segundos, uma pureza de alma e um desejo sincero de fazer o bem, como Santa Maria Goretti. Demonstrou caridade concreta, como Santa Teresa de Calcutá, que via Cristo nos mais esquecidos. E serviu em silêncio, sem esperar aplausos, como Santa Teresinha do Menino Jesus, em sua “pequena via” de santidade nas coisas simples. Tudo isso apenas com sua presença de espírito, em um gesto santo — não apenas pelo que fez, mas pelo que inspirou.
A cena foi corriqueira: uma fila de pão num supermercado de bairro de classe média alta. A atendente, sozinha, se desdobrava para atender os clientes com rapidez naquele começo de manhã. Chegou então uma senhora com a filha. A jovem não chamava atenção à primeira vista, mas ao observá-la melhor, notava-se, pelo andar hesitante e pela fala, alguma condição especial. A mãe a colocou na fila e disse:
— Quando chegar a sua vez, são seis carioquinhas e seis sovados, tá bem? Vou só ali do outro lado e volto num pulo.
— Tá bem — respondeu a moça.
Chegou sua vez. Ela ficou nervosa. Olhou para os lados, não viu a mãe. Os lábios começaram a tremer.
Foi então que a atendente, com um sorriso calmo e uma doçura que pareceu nascer de dentro, disse:
— Oi, meu coração. Você quer seis carioquinhas e seis sovados, né?
— É...
— Pois tome aqui, ó. Pronto, viu, amor? E leva um pãozinho de queijo de graça. Você gosta, meu bem?
— Gosta...
— Olha lá, mamãe já tá chegando. Pronto. Tá feliz?
Foi assim que uma santa sem altar aumentou, em mim, a fé — não em dogmas, mas na humanidade.
Mostrou que há gestos que alimentam mais que o pão. E há pessoas que iluminam o dia antes mesmo do sol nascer.
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