
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
De uns tempos pra cá andei reparando que muita gente anda com fones de ouvido. E daqueles pequenos, que nem dá pra ver direito.
Os adolescentes são mestres nisso. Mal acordam já pegam o celular e os fones. Ou estão digitando feito taquígrafas ensandecidas, ou de cara amuada, escutando suas músicas, balançando a cabeça suavemente.
Aqui e acolá, respondem com um “Hã?” e interagem com monossílabos, deixando um dos ouvidos respirar para, logo após, sufocá-los novamente, cobrindo os condutos. Nem sei como é que não desaprenderam a falar com a boca. Quem sabe, no futuro, as pessoas só falem por grunhidos.
Mas não são apenas adolescentes com escutadores eternos. Já vi muito coroa (a gente ainda chama assim as pessoas com mais de 50?) andando por aí com se estivesse em outro mundo, escutando sua musiquinha. Alguns ainda dão uns requebrados inconscientes.
Seja andando na beira-mar, em fila na padaria, fazendo supermercado ou até dirigindo (!) tem muita gente que prefere se desconectar do mundo e viver o seu casulo musical. Deve ser bom estar sempre com uma trilha sonora na cabeça, mas não deixa de ser estranho.
Um amigo disse que não escuta apenas música, mas usa o tempo para ouvir leituras de livros. Aí é que me parece estranho mesmo. Pra mim, ler é uma coisa quase sagrada, a ser cultivada em um ambiente tranquilo e sem interrupções, meio que isolado das profanidades do mundo e distante das heresias dos comportamentos. Só assim consigo entrar nas histórias, participar dos ambientes criados no papel e seguir a mente do escritor.
“Ah, mas são livros de negócios e autoajuda”, dizem alguns. Bem, nem vou falar nada.
“Eu escuto orações e rezo junto”, me disse uma senhora. Estávamos em uma farmácia e tive o impulso de fazer piadinhas sobre só rezando mesmo para enfrentar os preços dos remédios, mas preferi ficar calado. É realmente um uso bem elevado e talvez até evite a gente ficar pensando coisa ruim dos outros, ou criticando suas escolhas. A partir daí comecei a pensar a fazer o mesmo.
Comprei uns simples, discretos. A promessa de som perfeito se confirmou e já sai de casa com eles. Aparentemente tudo estava normal, meu mundo continuava o mesmo, só agora com trilha sonora.
Entrei no elevador cumprimentando os vizinhos que desciam com os filhos. Recebi logo um olhar de surpresa dos adolescentes. Pelo jeito, eu agora era um deles. Imerso no meu próprio mundo. Isolado. Me senti mais novo, moderno, conectado com o mundo musical escolhido a dedo. A mãe dos garotos disse alguma coisa, mas não entendi. Vi que ela mexia a boca, mas preferi ignorar e continuar em meu baile imaginário.
Não entendi por que as pessoas riram e se entreolharam quando pedi os pães de sempre na padaria.
Fui abastecer o carro e o frentista saltou quando eu disse para completar. Quando veio com a maquininha, passou o cartão com um risinho de lado. Não reparei, mas presumi que ele também estivesse de fones, escutando sua musiquinha preferida.
Fui à farmácia comprar umas coisas e, ao perguntar se tinha pastilhas para dor de garganta, a atendente arregalou os olhos, como se eu tivesse pedido algo indecente.
Perguntei de novo, articulando bem as palavras — às vezes as pessoas não entendem na primeira vez. Ela apenas apontou com o dedo. Deu dois passos pra trás. Olhos fixos em mim. E então, com a sutileza de um filme de ação, tocou o botão de segurança. Que atendimento frio. Pensei até em deixar uma reclamação.
No supermercado, perguntei a um rapaz onde ficavam os ovos. Ele largou o carrinho e saiu andando apressado, sem olhar pra trás. Cheguei a pensar que ele tivesse se ofendido. Gente cada vez mais sensível, meu Deus. Da próxima vez, vou evitar fazer perguntas — ou, sei lá, escrever bilhetes.
Mais tarde, passeando no calçadão, vi um conhecido e dei aquele "bom dia!" animado. Ele respondeu com um aceno tímido e atravessou a rua. E nem tinha trânsito. Achei rude. Mas vai saber, né? Pode ser que ele esteja passando por um momento difícil.
Quando já ia pegar o carro, os fones descarregaram e o mundo voltou ao normal. Bem, normal em termos.
Foi só quando fiquei sem as músicas é que então percebi o que passei a manhã fazendo. Pedi o pão aos berros, perguntei dos ovos como se estivesse em um campo de futebol, e na farmácia eu provavelmente soei como um pregador em transe, no modo trombeta do Apocalipse. Com o som dos fones abafando minha própria voz, não percebia o volume com o qual falava. Era isso. Agora fazia sentido o espanto, os risinhos, os passos apressados. Eu era um velho moderno… porém histérico.
Moral da história: o problema não é usar fones de ouvido. É esquecer que o mundo ainda escuta você no viva-voz.
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