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O cadáver na cama
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Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis

O cadáver na cama

Abri a porta devagar, e todo o horror anunciado estava ali
Tipo Crônica
Imagem de apoio ilustrativo. ParaTodosVerem: um gato de cor preta correndo (Foto: Pexels/Rabeebur Rahman)
Foto: Pexels/Rabeebur Rahman Imagem de apoio ilustrativo. ParaTodosVerem: um gato de cor preta correndo

Há momentos em que a razão se dobra, e algo selvagem parece emergir em nós. Uma ferocidade insana, que transforma o humano em besta.

Nesses tempos em que facções tomam conta do Estado e comunidades inteiras são submetidas ao poder da força bruta e sofrem seus abusos, pode-se esperar tudo, principalmente de quem mora na periferia e se vê diariamente acossado pela bandidagem.

De uma hora para outra, você pode ficar sem sinal de internet, pequenos comerciantes podem ser extorquidos, empresas se veem impedidas de prestar serviço e até mesmo pedágio pode ser exigido, como se vivêssemos um pós-apocalipse e os sobreviventes lutassem para simplesmente existir, submetidos àqueles com poder de fogo.

Imagino o desespero de alguém que já tem pouco e, ainda assim, é impedido de andar pelas calçadas em paz, de estudar em um colégio do “outro território” e até, para visitar parentes, precisa pedir “permissão” — sem falar na exploração nos monopólios de segurança, água, gás, internet e serviços de transporte impostos pelos novos senhores feudais urbanos.

Sei que as autoridades estão investigando e tentando combater essas espécies de terrorismo urbano, mas milhares de pessoas precisam que esse combate seja rápido e efetivo. Já vimos outros Estados e até países sucumbirem rapidamente a um estado de não-direito e, quanto mais o tempo passa, mais vivenciamos um paradoxo comportamental.

De um lado, todos queremos ordem e segurança. De outro, sem a atuação estatal clara e objetiva, com resultados práticos e palpáveis, as pessoas podem começar a desenvolver ideias de uma espécie de “justiça com as próprias mãos”, sentindo-se autorizadas a, ante a leniência estatal, realizar a autodefesa com os mecanismos de que dispõem, por mais selvagens que possam ser. Aquele amigo meu, o Machista normal, me contou um dia desses que vivenciou uma cena que parecia resumir isso tudo.

— Rapaz, em plena Semana Santa... Como é que alguém pode fazer uma coisa dessas? — começou, ainda enxugando o suor frio que brotava em sua testa. — A gente tinha acabado de chegar em casa e foi só abrir a porta que nos deparamos com os primeiros sinais do horror que veríamos...

Um pé estava logo na sala. Logo adiante, uma perna desmembrada sem piedade. Assustados e, à medida que entrávamos, fomos vendo mãos, braços e um rastro de órgãos esmigalhados que nos levava até o quarto. Minha esposa começou a ter ânsias de vômito e não quis prosseguir. Abri a porta devagar, e todo o horror anunciado estava ali.

Um tronco, sem os membros nem a cabeça, fora deixado em cima de nossa cama. Um corpo desmembrado estava, de barriga para cima, como que perturbadoramente nos esperasse.

A cabeça, daquele que um dia foi um ser vivo, estava ao lado, como quem tivesse o cuidado de posicioná-la de maneira quase respeitosa — como as cabeças dos cangaceiros de antigamente, ou das vítimas de acerto de contas que às vezes vemos nas manchetes. Gritei por ela.

Sim, eu sabia quem tinha feito aquilo tudo. Apenas uma pessoa seria capaz daquele rastro horrendo de fúria selvagem.

Demorou um tempo para aparecer. Surgiu por entre as sombras como se nada tivesse acontecido. Não esboçou qualquer atitude de arrependimento nem sequer alterou o semblante. Ela — a autora daquilo tudo — mostrou-se impassível, nos olhando com o olhar de superioridade de sempre. Tinha ficado sozinha em casa. A culpa foi de quem entrou, parecia dizer. E deu de ombros quando mostrei o quadro horrendo. Pensei que ela tivesse enlouquecido.

Minha esposa resolveu queimar colcha, lençóis e fronha. Aproveitei e joguei na fogueira o cadáver e seus restos para eliminar todos os vestígios. Os vizinhos não poderiam saber de nada. Limpamos e lavamos a casa com detergente e álcool.

Só depois ligamos para o veterinário. Apolonia, nossa gata, precisaria de alguns exames e vacinas. Matar um rato como ela fez poderia lhe trazer problemas.

Foto do Danilo Fontenelle

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