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Bonecas reborn: entre arte, afeto e julgamentos
Reportagem Seriada

Bonecas reborn: entre arte, afeto e julgamentos

Bebês reborn dividem opiniões e acumulam milhões de visualizações. O que está por trás das mulheres adultas que cuidam de bonecas com tanto zelo?
Episódio 1

Bonecas reborn: entre arte, afeto e julgamentos

Bebês reborn dividem opiniões e acumulam milhões de visualizações. O que está por trás das mulheres adultas que cuidam de bonecas com tanto zelo?
Episódio 1
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Um fenômeno curioso tem tomado conta das redes sociais: vídeos de partos simulados, programação de encontros de "mães reborn" e compartilhamento de relatos sobre o cuidado diário com bonecos hiper-realistas. Os bebês reborn estão gerando milhões de visualizações e também algumas discussões.

Para alguns, trata-se de um hobby inofensivo, uma forma de arte ou mesmo uma estratégia de conforto emocional. Para outros, o apego a essas bonecas levanta questionamentos sobre os limites emocionais e a idealização da maternidade sobre as mulheres adultas.

bebê reborn na maternidade reborn(Foto: Reprodução/Instagram/Alana Babys)
Foto: Reprodução/Instagram/Alana Babys bebê reborn na maternidade reborn

No limiar entre o objeto e o ser vivo, as bonecas reborn tornaram-se um fenômeno cultural, emocional e até político, que atravessa fronteiras de gênero, consumo e maternidade.

Elas continuam despertando curiosidade, encantamento e também desconfiança. Afinal, por que ainda causa tanto estranhamento ver uma mulher adulta cuidando de uma boneca?

 

 

Antes de tudo: o que são bebês reborn?

Bebês reborn são bonecos hiper-realistas feitos para simular, com máxima fidelidade, as características físicas de seres vivos, especialmente bebês, reais. O objetivo é proporcionar uma experiência visual e tátil que reproduza o mais fielmente possível a sensação de ter um bebê nos braços.

Bebes reborn na maternidade(Foto: Reprodução/Instagram/Alana Babys)
Foto: Reprodução/Instagram/Alana Babys Bebes reborn na maternidade

Criados a partir de moldes, eles recebem pintura em camadas para simular tons de pele, veias e manchas; têm cílios implantados fio a fio e cabelos enraizados; até o peso é semelhante ao de um recém-nascido.

O movimento reborn começou nos Estados Unidos, na década de 1990. Entusiastas de bonecas começaram a customizar bonecos comuns, repintando-os e alterando seus corpos para deixá-los mais realistas.

As práticas fazem parte do universo da chamada “arte reborn”, no qual cuidado, criatividade e expressão emocional se entrelaçam. O termo "reborn" (renascido, em inglês) reflete esse processo: pegar uma boneca comum e transformá-la em algo "renascido", mais detalhado e realista.

 

Conheça os principais marcos da arte reborn 

 

 

Figuras públicas e o “boom” dos reborns

Mas por que todo mundo fala sobre isso agora? O assunto tomou maior proporção no Brasil após o padre Fábio de Melo “adotar” um bebê reborn com síndrome de Down durante viagem à Orlando, nos Estados Unidos. O ato foi em homenagem à sua mãe, Ana Maria de Melo, que faleceu em 2021 por covid-19 e colecionava as bonecas.

 Fábio de Melo "adotou" um bebê reborn com síndrome de Down(Foto: Reprodução/Instagram)
Foto: Reprodução/Instagram Fábio de Melo "adotou" um bebê reborn com síndrome de Down

Em 2024, Nicole Bahls adotou duas bonecas, apelidadas de Maria Maria e Rainha Matos, a fim de treinar para quando tiver filhos. Uma delas, inclusive, tem o formato inusitado com as feições de um porco. Britney Spears também já foi vista recentemente com sua reborn durante viagem ao México.

A partir destas aparições, o fenômeno furou a bolha e ganhou as redes sociais. A popularização foi tanta que até o Spotify aproveitou o assunto e lançou uma playlist intitulada “Parto do Bebê Reborn”, com 2h30min de duração e 43 faixas — quase todas com uma sonoridade tranquila e acolhedora, pensadas para embalar o momento simbólico do nascimento de uma boneca hiper-realista.

 

 

Além disso, o boom dos bebês reborn alcançou até o cenário político. Em 7 de maio deste ano, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou o Projeto de Lei nº 1892/2023, que estabelece o "Dia da Cegonha Reborn" no calendário oficial da cidade, a ser comemorado todo dia 4 de setembro para homenagear artistas reborn.

Segundo a justificativa, o nascimento de um bebê é um momento “singular na vida de uma mulher, e não é diferente para as mamães reborn”. No entanto, junto com toda essa a visibilidade, criadores de conteúdo, artistas e entusiastas da arte reborn tiveram que lidar com o hate massivo e rótulos pejorativos.

Colecionadora Mel Babys Reborns com alguns de seus bebês reborns (Foto: Arquivo pessoal/Mel babys Reborn)
Foto: Arquivo pessoal/Mel babys Reborn Colecionadora Mel Babys Reborns com alguns de seus bebês reborns

Para a colecionadora e influenciadora Mel Babys Reborns, esse julgamento surge da ignorância: “As pessoas julgam muito antes de entender o processo. Antes de criticar, é preciso ouvir, pesquisar, entender o que é essa arte”.

Ela acredita que a arte reborn desperta o cuidado e o vínculo da maternidade. Seu marido, inclusive, apoia o hobby — carrega carrinhos, leva no carro, ajuda no que for preciso. “Na minha casa tem um quarto só de bonecas, e tá tudo bem”, resume.

Nesse cenário, as comunidades de bebês reborn nas redes sociais, especialmente no Facebook, cumprem um papel essencial na sustentação e expansão deste universo. Em grupos, artistas, colecionadores e entusiastas trocam experiências, técnicas e kits; vendem e compram bonecas; e compartilham milhares de registros de suas relações com os reborns.

Uma curiosidade é que é comum que artistas e colecionadores não utilizem seus nomes completos e verdadeiros nas redes sociais, optando por identidades que incorporam o termo "reborn" como sobrenome artístico. Essa prática não só cria uma marca pessoal dentro da comunidade, como também funciona como uma espécie de pseudônimo que protege a privacidade dos envolvidos.

 

 

A experiência do nascimento: maternidade reborn

Outro aspecto sobre o mercado reborn é a experiência do público final. Alguns vídeos circulam de bonecas "no útero" — representações de fetos embalados em “sacos amnióticos” em processo de nascimento. Há também algumas maternidades com incubadoras, berços aquecidos e carrinhos hospitalares.

Em Campinas, no interior de São Paulo, a loja Alana Babys transforma a compra de um reborn nessa vivência sensorial e emocional, onde cada detalhe — do ambiente ao atendimento — é pensado para criar uma experiência imersiva de maternidade.

Maternidade Alana Reborns(Foto: Arquivo pessoal/Alana Babys)
Foto: Arquivo pessoal/Alana Babys Maternidade Alana Reborns

Tudo começou quando Alana, a idealizadora, passou por uma experiência com seus filhos, que nasceram prematuros e precisaram ficar internados em UTI neonatal. Ao vivenciar de perto o ambiente hospitalar, ela percebeu que a incubadora, muitas vezes vista com medo, era na verdade um suporte de vida fundamental — e quis desmistificar essa imagem.

Como já trabalhava com bonecas reborn, passou a adaptar esse universo ao contexto hospitalar: foi atrás de incubadoras antigas em ferros-velhos e descartes hospitalares, restaurou os equipamentos para fins expositivos e montou cenários hiper-realistas. “Muita mãe entra aqui, vê a incubadora e diz para a filha: ‘Olha, você era assim’”, conta Alana.

As funcionárias vestem uniformes e entregam os bebês no carrinho, pesam, medem e preenchem a certidão de nascimento. Os modelos variam entre R$ 750 a R$ 9.500 e alguns mamam e fazem xixi. Na maternidade reborn ,“não se vende bonecas, se vende sonhos”, destaca a profissional.

Diversas histórias marcantes cruzaram a trajetória profissional de Alana ao longo desses 22 anos trabalhando na área, como o pedido de uma ONG que cuida de crianças com epidermólise bolhosa — uma doença rara e grave que causa extrema fragilidade na pele.

Bebes reborn na maternidade(Foto: Arquivo Pessoal/Alana Babys)
Foto: Arquivo Pessoal/Alana Babys Bebes reborn na maternidade

A profissional criou bonecos hiper-realistas com feridas simuladas no corpo, a fim de treinar mães e cuidadores. A ideia era oferecer uma ferramenta para que aprendessem a dar banho, trocar curativos e lidar com o cuidado delicado exigido por esses bebês reais.

 

 

Quem são os pais e mães reborn?

Aqueles que se consideram pais e mãe de bebês reborn não se limitam a uma categoria. Em sua maioria, são colecionadores, artistas, ou pessoas que estão lidando com o luto ou perdas gestacionais. As crianças são minoritárias entre o público consumidor: por serem itens delicados, feitos à mão, o uso infantil deve ser mediado pelos responsáveis.

Para alguns, os reborns atuam como uma prática da “cuddle therapy” (terapia do carinho, em inglês), que busca aliviar a ansiedade e a depressão, associando o ato de cuidar de um objeto a uma sensação de bem-estar emocional.

A psicóloga e psicanalista Pollyana Oliveira explica que, para além do colecionismo ou do uso pessoal que gera tanta polêmica, os bebês reborn têm sido explorados em alguns contextos específicos como uma ferramenta potencial dentro de abordagens terapêuticas ou de cuidado em contextos específicos.

 

Usos de bonecos reborn para cuidados de saúde


No cruzamento entre arte e afeto se destaca o trabalho de Emily Reborn. A artista revela que começou a fazer os bebês em miniatura em um curso de biscuit, em 2011. Desde então, ela está há oito anos trabalhando com arte reborn e tem currículo com diversos cursos voltados para a área.

Uma das produções que mais tocou Emily foi o pedido de uma mãe que enviou uma foto de uma criança, com características marcantes no rosto, e pediu que o reborn fosse o mais fiel possível.

Quando a artista entregou a boneca, a emoção foi imensa — a mãe revelou que aquele bebê reborn era uma homenagem ao filho falecido, e, coincidentemente, a entrega ocorreu na data em que seria o aniversário da criança.

 

 

O debate psicológico e social

A questão da “saúde” sobre os bebês reborn não reside no objeto em si, mas na dinâmica que o sujeito estabelece com ele.

“Se o reborn se insere na vida de forma a enriquecer, a permitir a elaboração de questões internas, a fomentar a criatividade ou a oferecer um consolo passageiro sem impedir o laço social e o enfrentamento da realidade, ele pode ter seu lugar”

Mas a psicóloga reforça que é fundamental que ele “não se torne um substituto totalizante que impeça o sujeito de desejar, de se relacionar com o outro e de lidar com a falta”. É uma questão de singularidade, de como cada um tece sua relação com esse objeto e o que ele representa em sua economia psíquica.

bebê reborn na maternidade reborn(Foto: Reprodução/Instagram/ Alana Babys)
Foto: Reprodução/Instagram/ Alana Babys bebê reborn na maternidade reborn

Quando se ultrapassa os limites é preciso avaliar cuidadosamente o impacto que essa prática pode ter na vida da pessoa. Em relação ao processo terapêutico, é fundamental que a relação com o bebê reborn que for usado para esse fim seja monitorada por profissionais da saúde.

Do ponto de vista psicanalítico, o reborn é o familiar (um bebê) que se torna inquietante por sua natureza inanimada, mas hiper-realista. “Ele borra fronteiras fundamentais que organizam nossa percepção da realidade: vivo e morto, animado e inanimado, humano e objeto”, destaca Pollyana.

Essa linha tênue entre o vivo e o morto, o animado e o inanimado, é uma das fronteiras mais fundamentais e, ao mesmo tempo, mais perturbadoras da experiência humana.

O problema surge apenas quando essa linha se torna excessivamente borrada ou quando a distinção é ativamente negada de uma forma que impede o contato com a realidade — o que, segundo influenciadoras, artistas e colecionadoras reborn entrevistadas para esta reportagem, representa uma minoria ínfima.

Para elas, boa parte do conteúdo que simula cuidados parentais — como vídeos na maternidade, troca de fraldas e passeios — serve, na verdade, como estratégia para divulgar e fortalecer comercialmente a cultura reborn, e não como substituto literal da experiência materna.

O efeito de estranhamento que os reborn causam remete ao conceito freudiano do unheimlich (o "estranhamente familiar"), no qual algo aparentemente comum é atravessado por uma inquietação ontológica: parece vivo, mas não é.

Bebê reborn na maternidade reborn(Foto: Reprodução/Instagram/Alana Babys)
Foto: Reprodução/Instagram/Alana Babys Bebê reborn na maternidade reborn

A reação social de rotular rapidamente como “loucura” pode ser entendida como um mecanismo de defesa social diante desse desconforto. Para Foucault, a sociedade define o “normal” e, por consequência, o “anormal” ou o “louco”, como forma de manter suas estruturas de poder e suas normas.

“Aquilo que escapa à norma, que desafia as convenções sobre maternidade, luto, brincadeira adulta ou a relação com objetos, é categorizado como patológico para ser contido, explicado e, de certa forma, neutralizado em seu potencial disruptivo”, reforça Pollyana.

É nesse contexto que as mulheres que colecionam ou compartilham seus cuidados com os bebês reborn acabam sendo alvo de julgamentos: por desafiarem os limites entre animacidade (distinção entre coisas animadas e inanimadas) e função social esperada do cuidado.

 

 

O patriarcado decide o que é normal?

A reação social desproporcional à maternagem simbólica das mulheres em torno dos bebês reborn evidencia também outras questões: como o patriarcado ainda rege os critérios do que é considerado aceitável ou patológico no comportamento humano.

O conceito de patriarcado, como discutido por diversas teóricas feministas, como Bell Hooks e Simone de Beauvoir, está enraizado na forma como a sociedade estrutura e define o que é considerado 'adequado' para cada gênero.

Bell Hooks e Simone de Beauvoir(Foto: Reprodução/Wikimedia Commons)
Foto: Reprodução/Wikimedia Commons Bell Hooks e Simone de Beauvoir

Os padrões culturais que associam certos hobbies ou atividades ao sexo masculino, enquanto rotulam como “estranho” ou ”inadequado” os mesmos comportamentos se executados por mulheres, revelam uma dinâmica de poder que limita a liberdade individual e reforça a desigualdade.

A artista Emily pontua essa contradição, visto que parte das críticas são de pessoas do sexo masculino: “Da mesma forma que um homem compra um PlayStation 5, uma mulher pode colecionar bebês reborn”.

A diferença de leitura de gênero não é apenas simbólica; ela reflete desigualdades estruturais que ainda associam o universo emocional e afetivo feminino à fragilidade e ao ridículo.

Alana, da loja Alana Babys, compartilha dessa visão e concorda que há um peso de machismo nas críticas direcionadas ao universo reborn. “Teve muita gente que não teve infância”, diz, lembrando das senhoras que entram na loja emocionadas porque nunca tiveram uma boneca na vida. “A boneca era uma espiga de milho. Hoje, elas realizam um sonho.”

Maternidade Alana Reborns(Foto: Arquivo pessoal/Alana Babys)
Foto: Arquivo pessoal/Alana Babys Maternidade Alana Reborns

Assim o reborn também se torna uma forma legítima de memória e reparação — especialmente para mulheres que cresceram sem espaço para o lúdico ou o cuidado voltado para si mesmas.

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua 2022, elaborada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que as mulheres dedicam, em média, 21,3 horas semanais aos cuidados com pessoas e à casa — quase o dobro do tempo dedicado pelos homens (11,7 horas).

Essa distribuição desigual do tempo torna ainda mais raro o espaço para lazer e hobbies entre as mulheres. Existe uma sobrecarga que reforça a naturalização dos papeis femininos como cuidadoras, mas que, paradoxalmente, invalida expressões de cuidado que não se encaixem na lógica funcional da “família tradicional”.

Mais do que bonecas hiper-realistas, os bebês reborn provocam. Tocam em temas sensíveis como maternidade, luto, arte, saúde mental, inclusão e, sobretudo, o direito de sentir. Eles desafiam fronteiras entre o lúdico e o terapêutico, o que é “normal” e o que é “estranho”, o que é arte e o que é afeto.

Em vez de julgamento, talvez o que essa “febre” escancare seja a necessidade de garantir que toda forma de expressão — inclusive o cuidado simbólico — tenha espaço na vida adulta.

 

 

No próximo episódio

Quanto custa um bebê reborn? No segundo episódio, conheça o mercado de artistas e artesãos de bebês reborn no Brasil e em Fortaleza.

 

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