
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Provavelmente todo mundo já viveu algo parecido, que é a convivência com um intelectual performático e o peso de sua erudição ostentada.
Há algum tempo, conheci um sujeito bem interessante que me diminuía diariamente. Não era nem de propósito, mas ele me intimidava com tanto conhecimento.
Éramos solteiros, idades aproximadas, e trabalhávamos no mesmo setor, com as mesmas obrigações — mas ele conseguia ler muito mais que eu. E, pior, não só lia mais como sabia discorrer com segurança sobre tudo que lhe caía às mãos. Parecia um colecionador de citações.
Adorava mencionar teorias, ideias e até mesmo meras opiniões. E todas eram de autores consagrados, que ele dizia ter acabado de ler.
Eu, limitado, mal conseguia ler o essencial para o serviço — isso sem contar que nunca fui capaz de decorar nomes de autores. Posso até saber suas ideias, mas dizer quem disse o quê, e ainda mais, em que livro, sempre foi não apenas uma dificuldade, mas uma impossibilidade crônica.
Comentavam que ele passava os fins de semana lendo. Aliás, lendo e fazendo fichamentos dos livros, anotando em retângulos de papelão as principais ideias do autor, registrando o livro e a página para, após a conclusão da leitura, armazená-las, qual tesouro, em uma caixa que dizia ser seu relicário.
Isso também me fazia sentir pequeno. Nunca consegui fazer fichamento de livro algum. No máximo, grifava as melhores passagens no próprio livro ou fazia alguma observação garranchosa nos espacinhos que sobravam da página. Tenho guardados, como lembrança dessa época, os Códigos de Processo Civil e Penal que usava para estudar. São comentados por mim mesmo, e meus sonhos restaram carimbados por entre aquelas linhas.
Às vezes ele soltava palavras difíceis ou comentava teorias jurídicas que eu não fazia ideia. Falava também sobre contatos e amizades com gente que circulava no meio intelectual. Frequentava lançamentos de livros e sempre andava com algum exemplar autografado debaixo do braço. Alguns em outras línguas. E eu, imerso em uma vida simples, nem me atrevia a pedir emprestado.
Era comum evitar puxar conversa com ele, apesar de trabalharmos lado a lado. Tinha medo de que percebesse minhas lacunas teóricas e literárias — poço profundo no meio daquela imensidão de cultura.
Quando ele falava, eu me calava, resignado. Confesso que havia o receio de não acompanhar o raciocínio e minhas opiniões soarem superficiais. Quando sugeria alguma solução para um processo, não rebatia. Acatava. Quando citava algum pensador contemporâneo, fingia que conhecia. Melhor assim, acreditava.
Essa foi a nossa convivência diária por cerca de um ano. Até que vi, em um canal de televisão especializado, uma reportagem sobre um autor que acabara de concluir seu doutorado na Alemanha.
Suas ideias contrariavam o que até então era entendido como pacífico na jurisprudência, e os efeitos práticos seriam de impacto, caso adotadas. Percebam esse detalhe: o autor não tinha lançado um livro. A reportagem apenas dava oportunidade para ele comentar como suas ideias poderiam ocasionar uma mudança significativa nos entendimentos dos tribunais.
Pois bem, no dia seguinte, lá estava o colega — como sempre, decantando sua memória fichada e expondo em resumo as ideias de alguns livros aos ouvintes de sempre — quando perguntei o que ele achava das ideias do autor.
“Ah, acabei de ler. Achei interessante, mas um pouco superficiais”.
“Como assim, ‘acabei de ler’? Será que ele leu a tese do sujeito? E em alemão?” – pensei. E o colega continuou resumindo a reportagem que certamente também tinha visto.
Resolvi testar minhas desconfianças e lancei a isca:
“Mas você não acha que a tese dele se parece com a do célebre jurista bávaro Günther Braumeister, autor de Teoria da Espuma Constitucional e defensor da doutrina da manteiga mínima no contrato social?". Ele gaguejou e concordou, acrescentando que sim, mas com algumas diferenças.
Dobrei a aposta e instiguei: “Pra mim, as ideias dele me lembram as de Fritz Lagerrahm, que dizia que toda boa decisão judicial deve descansar como a manteiga: fora da geladeira, mas em lugar fresco”. Ele engoliu em seco e disse que também já tinha lido Lagerrahm, mas discordava um pouco.
Concluí a conversa pedindo que ele me emprestasse esses dois autores, no que ele respondeu que os livros estavam com um amigo, mas que em breve me emprestaria.
Agradeci, desejei sorte ao amigo imaginário que ficou com os livros fictícios e, desde então, nunca mais confundi memória de fichamento com sabedoria.
Saí da conversa rindo por dentro — e convencido de que, se um dia eu escrevesse um livro, ele teria cheiro de manteiga e verdade.
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