
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
— Só um instantinho, viu? — disse a atendente, com sorriso apressado, continuando a separar, inspecionar, classificar e anotar os diversos tipos de tecidos, itens, características das peças, estado e dar seu vaticínio de especialista em lavanderia.
— A senhora quer mesmo lavar isso? — indagou, segurando com as pontas dos dedos, em pinça, o que provavelmente um dia foi identificado como uma bermuda, mas agora parecia mais um pano de chão esgaçado pelas décadas de serviço prestado — com zíper.
Quando se tem pouco tempo, ou está com reforma na área de serviço, ou ainda quando se quer uma lavagem mais especializada em algum item volumoso, as lavanderias estão à disposição. O serviço de lavar e passar não é barato, mas também não é mais coisa de outro mundo.
A comodidade vale a pena na maioria das vezes. Caso se deseje algo ainda mais individual e independente, existem lavanderias em que você mesmo faz a separação, coloca na máquina e espera as roupas saírem quase secas. Tudo muito prático e discreto. Bem, pelo menos era pra ser assim.
— É do meu marido. Ele adora — explicou a senhora, com um fio de voz, olhando para baixo. Outra senhora, quase na mesma idade, que estava na fila logo atrás dela, deu uns tapinhas nas costas — solidariedade muda de quem também é casada há anos. Para algumas gerações, nada mais une do que falar mal dos hábitos dos companheiros.
— Não deixa jogar fora, sabe? — continuou, com ares de confissão. — Uma vez escondi, só pra ver se ele dava falta, e foi um escândalo — comentou, lagrimosa. — Ele foi militar e, depois que entrou na reserva, só quer andar assim. Diz que cansou de farda.
— No meu caso, são as camisas de clube de futebol — ajuntou-se a companheira rechonchuda, de cabelos brancos e em coque.
Ao receber olhares de solidariedade das duas primeiras, a esposa do craque assumiu a atitude típica de quem só está esperando uma brechinha e passou a debulhar o rosário de queixas domésticas, em uma incompreensão com a memória afetiva futebolística de dar dó. Dar dó no marido, é claro.
— Ele se gaba até hoje de ter sido do dente de leite do Ceará e do Fortaleza. Dente de leite! E isso há mais de setenta anos! — começou a se exaltar, já amarrotando com as mãos em garras duas camisas de futebol de times diferentes e as exibindo como provas vivas de algodão puído.
— Depois que se aposentou, só quer vestir camisa de time! Qualquer time. Tem uma coleção. Todo dia é uma diferente! Não tem quem aguente mais isso. Ô mania de velho, chata! — disse, ao tempo em que lançava um olhar acusador para mim, o único homem naquela lavanderia, como que me desafiando a discordar.
Fiz menção de dizer algo na defesa do tarado das bermudas e uma palavra ou duas sobre o gosto eclético do futebolista, mas ao sentir os olhares me crivarem como adagas em chamas, optei pelo meu direito constitucional de ficar calado e continuei olhando para os cartazes de preços, como se nada daquilo me dissesse respeito.
— E ele nem joga mais! Tinha o racha dos amigos? Sim, tinha, mas há mais de trinta anos que trocou o campinho pelas praças de alimentação dos shoppings. Lá é onde ele encontra os amigos aposentados — explicou.
— Mas ele vai pro shopping de camisa de futebol? — perguntou a esposa do Indiana Jones.
— Não tô dizendo? Vai pra todo canto parecendo que está pra entrar no campo. Camisa de futebol, bermuda e chinelo franciscano. Só que a bermuda é decente. Não é como esse trapo aí, não — e apontou com desdém, fazendo muxoxo de nojo.
A última frase foi dita com a espontaneidade de quem está entre amigas. Juro que não esperava a reação da esposa do General Canelinha.
— Trapo, não! E é melhor bermuda de estimação do que andar feito palhaço de torcida — retrucou a esposa do tropicalista.
Para encurtar a história, o bate-boca tomou proporções inesperadas, e as antes solidárias agora defendiam os hábitos maritais como sentinelas em torre alta — olhos estreitos, mão firme no arco, prontas para atirar em qualquer opinião que ousasse escalar.
A atendente achou por bem chamar os maridos, que estavam nos seus carros, esperando. Depois de alguns minutos de diplomacia e piadas mal ensaiadas, os ânimos foram esfriando. As esposas, ainda emburradas, voltaram silenciosas à separação das peças — cada uma dobrando a roupa do outro como quem dobra promessa não cumprida.
Os maridos se foram rindo, lado a lado: um usava outra bermuda velha estampada de quem não teme o tempo, o outro desfilando a camisa do Brasil como se tivesse sido convocado. Combinaram se encontrar no Center Um.
E eu, quieto no meu canto, só pensei: da próxima vez, trago só as toalhas. Roupa suja é melhor lavar em casa — e longe da zona de guerra das pequenas neuroses da vida urbana.
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