
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Danilo Fontenelle Sampaio é formado em Direito pela UFC, mestre em Direito pela mesma Universidade e doutor em Direito pela PUC/SP. É professor universitário, juiz federal da 11ª vara e escritor de livros jurídicos e infanto-juvenis
Dizem que as praças guardam segredos. Também ouvem confissões, testemunham juras de amor e pulsam conforme os encontros, desencontros e acontecimentos.
Toda cidade tem sua praça carregada de simbolismo, história e vivência. Bem que poderíamos dar mais valor às nossas.
Afinal de contas, é nas praças que se caminha sem pressa, se senta para observar a vida ou para deixar que a vida nos observe. Os bancos de praça são confessionários silenciosos de solitários, leitores, aposentados e sonhadores.
Nas praças se cruzam gerações, classes sociais e histórias de vida. O senhor com seu cachorrinho se senta ao lado do jovem de fone nos ouvidos; o camelô divide o espaço com o artista de rua. É uma arena de convivência espontânea, onde o “nós” da cidade se desenha sem pedir licença.
Quantas histórias de amor começaram num banco de praça? Quantos reencontros, despedidas, alianças improvisadas e trocas de olhares silenciosos? A praça é palco de encontros reais, em carne, osso e emoção — muito antes dos algoritmos.
Para as crianças, é reino, pista de corrida, circo e esconderijo. Uma praça com balanço e areia vira o mundo inteiro em imaginação. O grito infantil é a trilha sonora mais honesta que ela pode ter.
Muitas praças abrigam pequenas imagens de santos — São Francisco, Nossa Senhora, Santo Antônio. Há velas acesas ao entardecer, flores improvisadas em vasinhos plásticos, promessas murmuradas por devotos anônimos. Ali, o sagrado se faz cotidiano, ao alcance de todos. Foi numa dessas que a vi.
Na verdade, passei a encontrá-la quase diariamente, nas caminhadas matinais à procura de emagrecer. Eu, roliço; ela, magrinha de dar dó. Andava meio curvada, passos curtos, com rosto marcado por entre seus 80 e 90 anos que calculo com generosidade.
Quando via uma criança, parava para fazer um carinho, seus olhos voltavam a brilhar e surgia um sorriso tímido e cansado por entre seus lábios finos enrugados. Fazia um carinho, dizia algo afetuoso para a mãe e seguia adiante para onde sempre se sentava.
Passava reto, decidida, por entre cachorros que a evitavam e gatos que fugiam, e se deixava cair no banco de sempre, com um suspiro feliz como quem termina uma maratona. Sempre trazia consigo um saco com miolos de pão.
Era metódica. Não espalhava os pedaços de qualquer jeito. Primeiro, observava o entorno com um olhar quase cerimonial, como se esperasse não ser notada. Depois, com mãos trêmulas, começava a distribuir as migalhas pelo chão, com movimentos delicados, quase litúrgicos.
Os pombos a conheciam. Chegavam em bando, alvoroçados, disputando espaço e farelos com aquele apetite meio cômico que só eles têm. Ela assistia a tudo em silêncio.
Não sorria, não fazia menção de jogar mais pão até que outro grupo pousasse. Ela parecia contar quantos pombos tinham comido e quantos ainda restavam.
Não com prazer, mas com a satisfação meticulosa de quem cumpre uma ordem — talvez uma que ela mesma tenha inventado. E então repetia o gesto, paciente, como quem cumpre uma tarefa importante.
Durante dias, achei apenas comovente a cena. Um gesto de gentileza.
Uma velhinha magra, caridosa, sustentando seus alvos fiéis com restos de pão dormido. Quase poético. Quase bíblico. Mas algumas coisas começaram a me inquietar.
Não sei dizer ao certo quando percebi. Talvez tenha sido o jeito como ela apertava os miolos com força demais, esmagando-os entre os dedos antes de lançá-los ao chão.
Ou a forma como, após jogar um punhado, seus olhos permaneciam fixos, como que esperando que algo acontecesse, como quem assiste a uma contagem regressiva invisível em uma impaciência oculta. E então vieram os corpos.
Discretos no começo — um ou dois pombos estirados ao lado dos canteiros, o pescoço dobrado de um jeito estranho. O jardineiro dizia que era calor, ou doença de pombo. A mulher do terço não achava nada, apenas fazia o sinal da cruz.
Havia uma cadência estranha naquilo tudo. Nos horários, nos gestos, nos silêncios. Certa manhã, me aproximei logo após sua partida. Havia ainda alguns pedaços de pão não disputados. Agachei-me disfarçadamente e toquei um deles.
Tinha um cheiro estranho, um azedo doce demais. O mais inquietante, no entanto, não era o cheiro.
Era o semblante dela ao se levantar do banco. Não havia culpa, nem pressa, nem temor de estar fazendo algo proibido. Havia uma serenidade mórbida, como quem se despede de uma missão cumprida.
Como quem acredita ter limpado o mundo de um mal cinzento, silencioso — pena por pena. As praças guardam segredos.
A soma da Literatura, das histórias cotidianas e a paixão pela escrita. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.