Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Não sei se o padre Júlio Lancellotti emociona meu coração quase virado em pedra, mas há algo de valente nele que me tira um pouco do lugar cômodo.
O padre velho não se vale de um Deus invisível para brigar por gente em derretimento humano. Pega o corpo dele e vai lá fazer o que não fazemos tanto. Ou nunca fizemos.
Se só há viadutos para alguém se abrigar e dormir durante a noite, então não podem existir paralelepípedos impedindo o acolhimento que já é indigno. É a arquitetura da exclusão.
Júlio Lancellotti termina sendo o alento (nas redes sociais) numa semana em que fomos assaltados na Câmara e no Senado com a eleição de Artur Lira (PP) e de Rodrigo Pacheco (DEM).
E num fevereiro em que o Brasil vai perdendo mais de mil pessoas por dia, na já banal Covid, e a discussão mais importante do momento é o que acontece na casa mais vigiada do País. Pois sim, Karol Conká não seria aquela "cult bacaninha" toda que se imaginava...
O padre é. Dá marretadas, bate na vida comezinha que embarcamos, porque já teríamos nos livrado do risco de dormir debaixo do viaduto. Já vencemos a humilhação do penico, compramos uma sentina com descarga na Normatel e demos adeus ao balde.
Padre Lancellotti dá a visão. Gente de rua não é anjo, também não é demônio e precisa dormir e escapar do frio. Num banco de praça ou na calçada que vai amanhecer fedendo a mijo e pronto.
A rua tem significados e não conseguimos chegar perto do abismo do outro. Porque, talvez, temos uma casa, duas vagas na garagem, uma cama e um cooktop.
Seu Papai Noel, um senhor de barba branca e rua que conheci na Joaquim Nabuco, me desenhava a morada dele e só depois enxerguei.
"O padre velho não se vale de um Deus invisível para brigar por gente em derretimento humano. Pega o corpo dele e vai lá fazer o que não fazemos tanto"
Na Joaquim Nabuco, quase esquina com a Antônio Sales, o batente de um salão de beleza virava o quarto dele ao anoitecer. Uma parede amenizava o açoite do vento e a laje o protegia do sereno.
De manhã, escovava os dentes numa torneira da praça João Dummar. E, para tomar um copo de café com um carioquinha, ajudava a descarregar umas coisas numa padaria perto dali.
Não me lembro o nome dele, sumiu da Cidade. Era de Manaus, tinha dois barcos no rio Negro e o álcool, disse-me, o separou da família e o colocou sem rumo.
Foi-se embora e num porre acordou numa calçada da Aldeota. Aqui deixou de beber, era verdade. Todo ano, chamava os amigos de rua para comemorar seu nascimento num quintal de bambus e outras árvores.
Comprava a aguardente e não tomava gole algum. Tinha o prazer de receber os convivas em um banco na Praça da Flores. Quem passava por ali, talvez só visse um magote de pinguços chibateando a garrafa de cachaça. Nem imaginavam que estavam no bosque da casa do Velho de rua.
Seu João Cobra, lembrei! Era a graça dele. A Praça das Flores, ele não a usava como praça. Era o quintal da residência construída ao vento. E eu comprando plantinhas para minha varanda, ali, num compartimento da casa de seu João dos Barcos.
Não pedia esmolas. Recebia o que aparecesse. E tinha uma queixa com os piedosos que perguntavam se ele tinha família. "Ora, será que nasci de uma pedra? Só porque moro na rua?"
Padre Lancellotti, aprendi (envergonhado) a não fazer mais essa arrogância. Ele sumiu. Espero que tenha reencontrado o caminho do rio Negro.
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