Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Tenho um amigo que há pelo menos 96 dias só posta flores no Instragram. Toda manhã, sem datar as publicações, Ronaldo (@ronaldosalgado4) bota uma flor em seu parapeito virtual e a oferece da janela dele.
São flores do deserto, rosas vermelhas, antúrios, papoulas, jasmins copos-de-leite, rosinhas, amor perfeito e muitas que não sei dizer o nome. Conheço-as da Praça e do Mercado das Flores, dos jardins por aí ou que rebentam no meio das ruas.
Das 106 imagens no Insta do professor de narrativas, 96 são flores ou rosas. Tive o olhar atraído, talvez, porque, nos guetos por onde navego, Bolsonaro invade tudo e vai necrosando mais um ano perdido em nossas vidas.
E as flores, repentinas e constâncias, quebraram a infelicidade explícita de um tempo tão travoso feito o que vivemos.
Olhe, se deixo de olhar as flores, se deixo de andar pelas ruas mal cuidadas de Fortaleza atrás de mangas e dos periquitos, tenho sentimentos que me igualam a bolsonaristas e trumpistas.
E Deus nos livre de mais essa desgraça de achar que temos de invadir o Palácio do Planalto. De ter vontade de servir uma galinha encantada, com pirão fervente, e assistir a Bolsonaro se engasgar com um ossinho besta e São Brás não o acudir. Não, não...
E Trump? O coerente era ser preso pela estupidez no Capitólio e por quatro anos de terror travestido de democracia. Ser responsabilizado pelas mortes dos quatro supremacistas brancos (idiotas) que perderam a alma por causa de um ser humano abominável.
Aqui no Brasil, fico a pensar como fomos arrastados para isso. Há centenas de dissertações e teses ditas e repetidas, mas tenho umas desconfianças de botequim.
A primeira é que somos um País de gente conformada e que nunca discutiu, com precipício, traumas históricos. E assim, invasores, ditadores, assassinos, violadores de indígenas, de negras e de miseráveis sempre se safaram.
Por último, amargamos uma ditadura militar de 21 anos. Um capítulo histórico de concessões, covardias e silêncios nunca passados a limpo. Não foram para as cadeias os torturadores nem quem matou nem quem desapareceu com "subversivos".
Ficou por isso mesmo. Esse povo, os sociopatas e os ocultadores de corpos políticos, voltaram para suas casinhas e criaram filhos e netos. Em família, sustentaram silêncios sobre o que fizeram na ditadura e plantaram ódios.
Esse povo, que estuprou presas políticas e empurrou "comunistas" de helicópteros, reforçou em família (nas igrejas, nas escolas, nas empresas, nos quartéis, nas repartições, no Congresso e nos governos) o machismo, a homofobia, o racismo, a misoginia...
Como o Brasil nunca teve coragem de punir quem financiou a ditadura, esse povo continuou atuando nos porões domésticos e públicos e, um dia, elegeu isso que temos hoje. Bolsonaro é o modelo desprezível de pai pós-ditadura (1964-1985) e um mito ainda da época das invasões europeias por aqui. Ninguém foi enganado.
Só muita coragem, terapias e revisões históricas severas para incorporarmos que não somos condenados a conviver com a quimera, com torturadores e seus bajuladores. Não mesmo. O lugar deles não é entre flores e rosas amanhecidas.
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