Logo O POVO+
Não vai chover mais flor branca na esquina
Foto de Demitri Túlio
clique para exibir bio do colunista

Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Não vai chover mais flor branca na esquina

Tipo Crônica
2802demitri (Foto: 2802demitri)
Foto: 2802demitri 2802demitri

Era na esquina da Afonso Celso com Monsenhor Bruno. Mataram o único ipê branco que existia por aqui. Uma pena! Era raro e parecia que nevava quando se punha em flor.

Nunca sonhei com neve no Semiárido nem no litoral, por isso mesmo era algo fora do comum vê-lo florir nos novembros ou, menos se esperava, em algum dia de junho.

E era passageiro. Quem não passasse logo pela esquina que nevava em Fortaleza perdia o presente. A copa toda um vestido de noiva, daqueles de véu, grinalda, cauda longa e decotes sem soutien e tules.

Era um prazer. Nos primeiros dois dias sustentava a primeira florada sem nenhuma folha verde no caule, galhos pretos e centenas de botões explodindo. Bonito dando flor em meio ao asfalto e uma alvura de tapete estendido na calçada desconfortável de se ir.

Era o que tinha de mais belo (e raro) nesse lado feio do mormaço da esquina. Na diagonal ainda restam duas mangueiras de periquitos. Em frente, dois antigos pés de jambo e, vizinho, um pé de jasmim. Pra que mataram o ipê branco?

Era miúdo para um pé de ipê, não passava de três metros e bem magrinho. Mas todo ano, quando madrugava explodindo em flor, eu corria para ficar feito besta debaixo dele e florando até não querer mais...

Pra que mataram o ipê branco que nevava na esquina feia da Cidade?

De noite - sob a luz incidente do poste, sem nenhum um carro, nenhuma lua cheia e apenas o medo de algum ladrão ou da polícia cismar com minha aparência "marginal" - não cansava de ir lá.

Inventava que ia fotografá-lo, mas o desejo era me encostar nele. Ainda mais nos dias em que chovia o branco. Uma, duas, três, seis... dez flores flutuando em espiral até o chão.

Não é fantasia, pode ser coisa de doido, mas se você se permitir com alguma árvore entrará num filme (real) do Akira Kurosawa.

 

"Na esquina tem uma inexistência, o ipê não respira mais. E é porque há um ano morremos sem fôlego, mas nem isso nos faz deixar de querer derrubar árvores e ignorar a morte dos outros"

 

Foi uma poda criminosa no ipê. Dessas bem pandêmica, de morte mesmo. 250 mil em dores, sem pai nem mãe nem vô nem vó nem outros queridos idos.

Cortaram tanto o corpo dele, na copa, que morreu um mundo ali. Tem gente que nem imagina quantos habitam na galáxia de uma árvore.

O ipê e bem uns dez pé de gente, que me deram notícia na última semana de Covid, morreram sem ar e já são saudades doídas.

Um luto gemido! Dizem que o corpo precisa também da tristura. Mas demais, além das forças, esmorece o prumo e desembesta no vão.

Há um mês, passo lá para ver se alguma folha verde rebenta. Um sinal. Sou feito de Caatinga, padeço e torno. Não, não... Está mortinho o ipê.

Na esquina tem uma inexistência, o ipê não respira mais. E é porque há um ano morremos sem fôlego, mas nem isso nos faz deixar de querer derrubar árvores e ignorar a morte dos outros.

Próxima vez que for à esquina da Afonso Celso com Monsenhor Bruno, lá é o consultório do urologista que me toca os escondidos, vou perguntar por que tanta indelicadeza com o ipê branco? Já não bastam tantas mortes para se chorar quase todo dia?

Será que ele é um dos médicos que não crer em ipês sonhadores? Será que o doutor nunca floriu nos novembros?

Toda vez que passo lá, sinto falta de chover flor. Uma saudade grande do ipê, me levou à dona Gal e a outros que foram levados entre o ano passado e agora por essa tal covid.

Ainda há o tronco e os galhos na calçada mal cuidada... E umas saudades.

 

Foto do Demitri Túlio

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?