Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Chinelo emborcado... Corria para desemborcar porque entre as crianças havia a crença, chagada em algum tempo e por alguma voz sem corpo, que a mãe poderia morrer se a havaiana permanecesse virada.
Uma alegoria do bestiário da existência e passada de infância em infância. Ainda vejo alguns adultos correndo com a criança deles para desvirar o chinelo emborcado no caminho. Eu, ainda hoje, desviro-os. Pura herança mágica.
Seria do tempo medievo, da moral e da tônica punitiva perpetuada por monges antibruxas de lá para cá? E ainda hoje disseminada por um punhado nocivo de religiosos neopentecostais de templos, tvs, lives e zaps?
Também podem ser permanências ainda da Era da Peste, por exemplo, e da matança de gatos (principalmente os negros), que teria dado mais ainda no desequilíbrio de um cotidiano insustentável e a multiplicação exponencial de ratos e pulgas para a finalização antecipada da vida de milhares.
São as narrativas simbólicas, tão contemporâneas e maldosas, urdidas para se acreditar que a morte é isso mesmo, "todos vamos morrer" e não é uma gripezinha que nos fará perder dinheiro e empregos. É assim ou a morte é posta no campo do bestial e só os apavorados trombam nela.
Ver o próspero Edir Macedo se vacinando com o melhor dos imunizantes em Miami é a confirmação de que Jesus, para ele, é apenas uma artimanha para encher as burras.
Foi o ungido da Universal e dono da Record que disse que a Covid é uma tática de Satanás e da mídia para gerar dúvida e medo. Pelo visto, Deus não tem esse poder todo e não é garantia de imunidade para Macedo. E ainda mais no cemitério em que o Brasil se transformou.
Numa outra ponta ionesca da Covid, muitos médicos cearenses fiadores das políticas negacionistas de Bolsonaro têm pensamento lesivo semelhante ao de Macedo.
Em meio à pandemia que desnaturaliza o ato perfeito da morte, eles creem na invenção de uma persona que "derramou o próprio sangue pelo Brasil".
É tão manicurta a crendice no mito do Messias esfaqueado quanto foi a creditação na última propaganda da campanha de 2002 para presidente da República. Na narrativa cafona-marqueteira, várias mulheres vestidas de branco e grávidas da "esperança" vendiam o nascimento de um Salvador - no caso Lula.
Entre um e outro, menos medonho, sou obrigado a me iludir com o enredo imperfeito do bestiário do Sapo Barbudo em vez do culto cego ao fauno que profana a falta de ar dos entubados e classifica o choro, pela morte alheia, como "frescura".
Deu vergonha os médicos do Ceará assinarem aquilo e outros ainda insistirem com um tratamento precoce da Covid. Será que a OMS é tão sacana assim com mais de dois milhões de mortes?
Receitar cibalena como medicação (isso aqui é uma alegoria), e a pessoa ter a sorte ou o organismo mais resistente ao novo coronavírus, pode criar a ilusão de que o comprimido é um escudo eficiente contra a Covid. Será que centenas de pesquisas científicas do mundo são tão desonestas com a vida dos outros?
Quando vi o governo do Ceará comprar oito câmaras frigoríficas para colocar na frente dos hospitais, tive a impressão que a próxima crise da pandemia no Estado será um colapso funerário. E não haverá chinela desemborcada que dê jeito.
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