Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Uma amiga, a Glória, desejou que meu "tímpano (esquerdo) fosse visitado por delicadezas". A frase já curou mais que a penicilina, senti isso lendo quieto comigo. E o desejo da moça me fez deixar ser entrado por um gozo de silêncios e de solicitudes.
É mesmo! Nunca havia considerado o tímpano e a necessidade de menos coisas grosseiras entrando por ele. E não falo somente dos cotonetes, das tampas de canetas, dos palitos de fósforos enrolados em algodão e da ponta de unha do dedo mindinho tirando a cera. Não, não.
Por descortesia nossa contra o corpo inteiriço não somos bons companheiros e o açoitamos indiscriminadamente.
Logo o corpo, essa porção amorosa de nós que nos leva e traz na existência até findar.
Fora a falta de cuidado com partes lembradas somente no adoecer, há palavras, frases e discursos de almas derreadas que as ferem mais do que cachos de bactérias oportunistas.
Fiquei enredando. O que meu tímpano esquerdo - maltratado há mais de ano por mim e por esse tempo de mortes que não ajudei a desenhar - poderia receber de afabilidades?
Um amigo sentiu pela primeira vez a presença do coração no peito, apertando, e correu para socorrê-lo. Colocou cinco stents e deu susto
Ser visitado por palavras que não foram ainda violentadas e, por isso, ainda produzem um manifesto de excitação, um cheiro de memória boa, uma vontade desejante de espalhar uma notícia oferecida de possibilidades.
Por causa do tímpano sem reverberação, numa promessa de volta a quase normalidade daqui um tempo, a percepção corpo micélio até aflorou. Foi pelo aperreio do medo de, agora, poder faltar uma função quando se tem todas.
E eu, que já tentava tronchamente me comunicar com os empacotadores surdos e mudos do Cometa, fiquei observando mais aquele mundo distanciado.
Passivo à linguagem dos não-falantes, por falta de significados capitalistas (daí a imposição de se prender o inglês, o francês), nunca pensei em incluí-los num diálogo de verdade.
Nem lembro de cogitar no "futuro" de meus filhos a fluência na Língua Brasileira de Sinais. Qual serventia teria? É a segregação por cultura e a impossibilidade de outras convivências fora da bolha dominante dos falantes.
Duas amigas tiveram os seios retirados por causa de um câncer e fomos impelidos a reaprender sobre o corpo delas e, também, visitá-los com delicadezas
Um deles, que nunca tive a gentileza de saber seu nome, quando deixou as compras no meu carro escreveu na poeira do automóvel sujo que morava em "Messejana". Estávamos tentando falar sobre o assalto que ele havia experimentado na Aldeota.
Peraí! Talvez os antibióticos ainda estejam embaralhando minhas formulações. Estivesse escrevendo uma redação do Enem, provavelmente já teria fugido do tema.
Vou tentar voltar. Parece que é assim: algumas sutilezas sobre a percepção da presença do corpo da gente e do outro só vem na iminência da perda. É obviedade, sei.
O Gilmar de Carvalho não é mais corpo abraçante em Fortaleza. E sinto falta de almoçar com ele no Verdelima do Bairro de Fátima e, depois, deixá-lo no Shopping Aldeota para a sessão de psicanálise.
Um amigo sentiu pela primeira vez a presença do coração no peito, apertando, e correu para socorrê-lo. Colocou cinco stents e deu susto.
Duas amigas tiveram os seios retirados por causa de um câncer e fomos impelidos a reaprender sobre o corpo delas e, também, visitá-los com delicadezas.
É a existência, só isso! Talvez só mais lhaneza com o dentro e fora da gente.
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