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Sobre crônica e João do Rio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Sobre crônica e João do Rio

A escrita da crônica é um ato, às vezes, sonhado. É algo tomando corpo, vida própria sem controle de recepção. João do Rio encontrou uma alma nela
2706demitri (Foto: 2706demitri)
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Tenho prazer em escrever. Mas não nego meu aperreio até concluir o texto. Principalmente quando é uma narrativa que chamam de crônica. Também na reportagem há um redemoinho em meu redor.

Cuidar de discursos sem pecar com os interlocutores, ter cuidado com qualquer palavra escrita por causa da recepção. Ainda bem, não há ninguém nem um supercomputador capaz de controlar a recepção.

Nem precisa, chega de controladores. Escreve-se e desapega-se do que escreveu. Quando o texto toma corpo de algo vivente, excitante, você deixa ir feito um rio até o mar. Como vai ser o encontro? Ninguém saberá. Nem quem escreve nem quem, generosamente, irá lê-lo.

Fico, também, feito galinha querendo pôr. Subo no guarda-louças e se o forno do fogão estiver aberto (e frio) entro. Procuro caixas de sapatos debaixo da cama, cisco e puxo palhas de bananeiras e folhas da goiabeira para me aninhar.

Vejo uma mosca voar e faço o percurso com os olhos. Esfrego as mãos e me contorço como se o mar estivesse enchendo a maré e entrando do mangue para a Cidade. É um pra lá e pra cá com prazer até o gozo ou não.

 

A baleia voava sobre o açude Castanhão. Não queria nadar, queria voar. Voava cheia de asas de passarinhos que a sustentavam

 

Vejo coisas, escuto vozes e ruídos num silêncio particular. Levanto-me da cadeira, penso no mercantil por fazer e alguém repetindo que não há nada na geladeira. Escuto Iza falar alto ao telefone umas dez vezes e ouço suas histórias enquanto arruma a casa.

Um amigo, o Tarcísio Matos, diz que alguns textos são soprados pelo vento ou pela varanda da Cidade invadindo a casa. Vou à cozinha, procurar algo doce. O açúcar me droga um pouco e acho que estou pronto para voltar à cadeira e ao teclado.

É um negócio. Tento me lembrar de sonhos, de palavras cheias de vida que me disseram na semana. Ou cheias de morte, de medo, de paixões, de um casal de amigos que se separou, de um moço que ainda se refaz da partida da esposa.

Sobre os sonhos, sonhei algo no intervalo de uma insônia e quando despertei fui ao bloco de notas do celular. Sim, aprendi a anotar ali. O papel e a caneta ainda são companheiros, mas no escuro o telefone ilumina.

Tinha sonhado escrever um livro para crianças. Um continho chamado "A baleia voadora". Tenho algo com as baleias, admiração, medo e muito frio de nadar com elas num oceano à noite.

No que amanheceu estava escrito assim. "A baleia voava sobre o açude Castanhão. Não queria nadar, queria voar. Voava cheia de asas de passarinhos que a sustentavam. Rolinhas, sibites, pitiguaris, anuns brancos, corocas e pretos. Pica-pauzinhos-anões-da-caatinga. Surucuás-de-barrigas-vermelhas, abre-e-fecha, corrupiões, beija-flores...".

"Só passarinhos miúdos. Milhares deles, de asas curtas e forças para carregar a baleia de léguas e léguas de tamanho acima das águas dos Castanhão. Voavam e cantavam ao mesmo tempo e a baleia estava gostando de voar e não de nadar".

 

Terei de me anoitecer novamente, atravessar a insônia e nos intervalos de sono aproveitar para o resto do texto eu encontrar noutro sonho

 

"A baleia queria fazer um ninho nas carnaubeiras afogadas, inundadas quando Jaguaribara Velha sumiu nas águas num dilúvio no Sertão em 2004. Uma chuva só e nasceu o mar ali, doce, fundo, muito fundo e a floresta amazônica se mudado para ali, embaixo das águas. Sem perigo de incêndios".

"Cansados, cheios de câimbras, os lotes de passarinhos iam sendo substituídos por borboletas. Amarelas, invisíveis, brancas, encarnadas com preto, verdes, azuis, flamboyants vermelhos e a baleia não queria parar de voar...".

Estava escrito até aqui, não tinha a história toda contada. Terei de me anoitecer novamente, atravessar a insônia e nos intervalos de sono aproveitar para o resto do texto eu encontrar noutro sonho. É assim a escrita comigo.

 

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