Logo O POVO+
Desamores brutos
Foto de Demitri Túlio
clique para exibir bio do colunista

Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Desamores brutos

Estamos mais brutalizados do que há quatro anos. O incêndio do Parque do Cocó é uma continha no rosário de ruindades contra o rio e a floresta
Tipo Crônica
21.11 demitri (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 21.11 demitri

.

Meio que fedendo ainda a fumaça, vou tentar contar um pouco sobre os bastidores de um incêndio de mais de 22 horas. Imagino a vida difícil e honrosa de um bombeiro, lidando com a violência natural do fogo.

Falo de mais de 22 duas horas porque incluo o rescaldo do dia seguinte e ainda os braseiros assando raízes de mangues-pretos, troncos que viraram carvão, sapos incendiados, iguanas queimadas, manés-magos que se derreteram, bichinhos desintegrados e até peixes sufocados pela queima.

A gente está mais bruto do que há três anos. Já éramos danosos ou culposos. E, daqui a pouco, entraremos em mais um ano tomado pela perversidade da era do macho escroto. Do imbecil que goza com o ódio desamoroso quase interminável.

Tanta maldade que contamina quem quer que seja. Tal qual o fogo que desmanchou colônias invisíveis de fungos, cágados de um rio Cocó já muito surrado, mundos de qualquer ser vivo que não tomamos conhecimento das rotinas fora dos mapas da Cidade que dá coice.

 

Sobre a territorialidade, há alguma revolução mais estripadora do que a deflagrada há anos pelas facções criminosas? Claro que há

 

Falo do macho, essa mentalidade do tal "guerreiro". Do destemido que tem o pau como arma, que faz arminha nos dedos da criança. Da fodona, do super empreendedor que antes dos 30 já conseguiu o seu milhão. Homens e mulheres.

Daqueles e daquelas que dão porrada quando contrariados, que botam o vara na mesa como símbolo de territorialidade. Dos que apontam quem é quem na cadeia alimentar e se sentem predadores bem-sucedidos.

Sobre a territorialidade, há alguma revolução mais estripadora do que a deflagrada há anos pelas facções criminosas? Claro que há. A diferença são os anos de escola, a classificação de cada um por bairro, o muro alto, a religião, a cor da pele e a renda.

Ora, as facções são também partidos políticos, quilombos contemporâneos, coletivos, bancadas, grupo de jovens, aquartelamentos, bandas de pisadinha, universidades, guerrilhas urbanas em situação de favela, concílios... O rejeitável é porque morrem antes dos 20. Não "têm futuro".

 

Pois teria tocado fogo, esse costume tão caseiro de fazer coivara no terreiro e empestar a roupa do varal

 

Dizem, não é prego enfiado ainda, teria sido alguém de uma facção que semeou 12 focos de incêndios em pontos diferentes. Na antiga salina por onde o rio Cocó existe antes das invasões dos bárbaros europeus. Organizações criminosas que disputavam os territórios alheio. Notadamente, venceram os sanguinários portugueses executores de índios e de escravizados pretos. Isso, falo do passado.

Pois teria tocado fogo, esse costume tão caseiro de fazer coivara no terreiro e empestar a roupa do varal. E acho que se eu fosse um deles (olha eu me diferenciando), também meteria brasa e ficava rindo do grupo rival, dos que consumem mais e da Cidade tossindo fumaça.

Mas também não entendo a burrice da facção. Se é que foi uma delas. Tocaram fogo e fizeram o favor de chamar atenção para aquele pedaço do Parque do Cocó. Rodeado de insegurança, desflorestado há anos, sem cuidado, muito lixo e pouco amado.

Um amigo, que reclama que gosto somente do "Cocó dos ricos" (Sebastião de Abreu e Adahil Barreto), disse-me que, supostamente, uma facção rival anda tocando fogo no Cocó do antigo Mata Galinha (Dias Macêdo).

 

Tenho pena do Cocó. Tenho dó de qualquer ser vivo queimado ou morto na fogueira de qualquer que seja o Tejo. Num auto escroto, sem chance de defesa e impregnado de preconceitos indo e vindo

 

E por quê? Porque ao queimar a mata, impediria que o grupo criminoso opositor se esconda no mato ou prepare tocaia pra alvejar e esquartejar o inimigo. É mentira? É proseável e se desenha no campo simbólico e real da ruindade exclusiva.

Tenho pena do Cocó. Tenho dó de qualquer ser vivo queimado ou morto na fogueira de qualquer que seja o Tejo. Num auto escroto, sem chance de defesa e impregnado de preconceitos indo e vindo.

Eu tenho ódio e rebolo lixo no rio. Faço ligação clandestina e fodam-se os peixes. Tocar fogo no manguezal foi, somente, mais uma ruindade contra a mata e o caranguejo (que nem existe mais naquele tição torrado). Foi uma foice no próprio pescoço.

E sobre os bastidores? Eu também toco fogo no rio e dancei feito o Coringa no meio daquela fumaça, sapateando na fuligem da floresta se desmilinguindo e os imóveis para a fotografia. A mata renasce, nós é que estamos mais brutos do que há três anos.

 

MAIS CRÔNICAS DE DEMITRI TÚLIO

A poética do metaverso

A perversidade contagiosa de matar onça 

O Batman da esquina

Cidade reconstruída

Gestor do Parque do Cocó afirma que incêndio foi criminoso 

Foto do Demitri Túlio

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?