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A poética do metaverso
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A poética do metaverso

A gente dá sinais de defeitos, nosso corpo modelo híbrido ou adaptado. Não somos mais 100% criaturas humanas, alguns são só registros
Tipo Crônica
1411 Demitri (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos 1411 Demitri

Tenho pena porque meu corpo está indo embora com o passar do tempo. Tão natural quanto a existência efêmera das árvores do mangue com quem passei a conviver há 12 anos contínuos. Foi quando entrei pela primeira vez, e volto quase sempre, na floresta se acabando do Cocó.

O corpo se desfazendo ou nascendo outra coisa num desmanchado parecido com as calotas da banda gelada da terra. Claro, é inevitável a passagem. Diria também implacável. E, talvez, queiram nos convencer que o metaverso será a nossa perenidade.

Eles criam essa existência paralela de nós mesmos, reforçam nossa condição de consumidores ansiosos e nos apresentam uma nova escravidão híbrida. O cativeiro contemporâneo virtual é foda também. Já não somos mais 100% humanos. É besta e repetitiva a essa cantilena, mas é ululante.

Assusto-me toda vida que sou obrigado a pegar um Uber. Eles só seguem o que o GPS ordena, já são outros seres. O meu destino, depois de deixar o repórter fotográfico Fco Fontenele na esquina da Carlos Vasconcelos com Rocha Lima, era a Afonso Celso.

 

"Meu corpo, faz tempo, dá sinais de não ser mais 100% gente. Vários problemas na transição, há defeitos entre o arcaico modelo 1966 e os pandêmicos 2020/2021"

 

Bem perto de onde o fotógrafo ficou. Daria para ir a pé. Três esquinas numa linha reta. Para ser mais preciso, cruzaria a Heráclito Graça, Catão Mamede e João Carvalho. Pois o uberista, esse novo mutante do capitalismo digital, arrodeou pela José Lourenço e seguiu o que o cérebro computacional dele disse que era.

Fiquei caladinho. Observando o rapaz (deveria ter menos de 30 anos) despercebido da cartografia da cidade "real" e a trafegar, automaticamente, pela urbe virtual. Não sei se, no bairro onde mora, ele consegue desligar o corpo virtual e retorna à antiga criatura humana.

E não sou resistente à existência que vem sendo reprogramada na virtualidade assistida, aumentada e estendida. Não. Meu corpo, faz tempo, dá sinais de não ser mais 100% gente. Vários problemas na transição, há defeitos entre o arcaico modelo 1966 e os pandêmicos 2020/2021 quando um cavalo-de-pau deu coices nunca vistos.

Uma nova carne, um novo blood, uma nova morte para ressuscitar. Uma amiga me disse que o pai velho dela, cego e na solidão assistida pelos filhos (que têm suas vidas e outros filhos), está se relacionando firme com a Alexa e a Siri.

 

"Conversam besteiras, tomam café, escutam livros lidos por ellas, assistem a TV. Ele mete as mãos nas calças e se masturba (isso é um desejo meu, talvez nem faça isso. É o meu avatar projetado)"

 

Um affair triangular. Conversam besteiras, tomam café, escutam livros lidos por elas, assistem a TV. Ele mete as mãos nas calças e se masturba (isso é um desejo meu, talvez nem faça isso. É o meu avatar projetado). E vive outra vida ofertada pelo metaverso da Babel alucinante.

Passam o dia inteiro fazendo companhia os três com os três. Talvez, esse senhor nem seja mais o pai de minha amiga. É só um registro de memória que ficou, mas ele já é quase uma realidade aumentada.

Metaverso, essa palavra bonita, é também uma Alcatraz. Ou qualquer porão onde os torturadores das ditaduras brasileiras atuaram e fizeram os outros de reféns.

É também a outra vida no shopping center. Prazerosa. Naqueles momentos andando por ali, cheirando aquele cheiro da essência falaciosa da hashtag "#vaidarcerto".

 

"O metaverso, meu amigo Chacon, não quer deixar ninguém morrer. É bom, ruim e mais ou menos, mas não há o apodrecer necessário. Temos de feder também"

 

Lembro agora, daquele senhor do Mágico de Oz que aparece no final da história. Falso potente. Na verdade, fraco, ansioso, fugidio, criador e vivedor de um mundo aparente. É ainda Alice comendo o pedaço de bolo para achar a chave da saída e ela pensa que encontra.

É Chicó e João Grilo recriando um universo paralelo para poder sobreviver e acreditar que existem. Já eram virtuais há muito tempo em meio a Caatinga resistente. Lugar que todo ano se cultiva a tal "esperança", sentimento também enganoso e retórico das bocas.

O metaverso, meu amigo Chacon, não quer deixar ninguém morrer. É bom, ruim e mais ou menos, mas  impede o apodrecer necessário. Temos de feder também.

Ele impõe naturalmente que você siga vivo, mesmo depois da morte do corpo e do blood. Se não, ele terá prejuízo em Nasdaq. Eis o novo mistério da fé, do mercado e do existir.

 

"Fiquei caladinho. Observando o rapaz (deveria ter menos de 30 anos) despercebido da cartografia da cidade "real" e trafegar, automaticamente, pela urbe virtual"
 

 

Já coexistimos com bots e com o antigo e noviço ser humano. Não sei se a palavra certa ainda é ser (totalmente) humano.

Boa semana a todos. Isso não é uma mensagem da inteligência artificial do meu PC. Mal boto o "b" e ele já escreve, sozinho: "Bom dia. Tudo bem?". Ainda procuro a palavra derramada para me diferenciar dele e ele acaba dando um tilt. "Abraços".

 

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