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O Batman da esquina
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

O Batman da esquina

Entre Fortaleza e Gotham City, tenho a impressão que encontrei o Batman (com fome) na Rui Barbosa. Ele sorriu pra mim e fiquei incomodado
Tipo Crônica
3110demitri (Foto: 3110demitri)
Foto: 3110demitri 3110demitri

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Encontrei o Batman na esquina perto de casa. Frágil e mirradinho, mas parecia feliz mesmo como uniforme meio surrado e a capa rasgada. Estava sem máscara e bebia, acho, uma garrafa gelada de água.

Foi na esquina da Catão Mamede com Rui Barbosa. Enquanto eu esperava a vez no carro, ele riu do meio fio com alguma felicidade que me incomodou. Vai ver, porque pedia esmolas, era um Batman desprotegido e estranhei a felicidade expandida. E minha culpa (idiota)se mexeu no corpo.

Também por alguns segundos, lembrei do Pedro dentro da roupa do Homem-Aranha. Fabulando em andar pelas paredes, rindo feito criança. Pedro é meu filho mais novo, hoje com 24 anos e estudante de Medicina da UFC. Geralmente, não falo de minhas três crias. 

Por alguns minutos, achei que o Batman da Rui Barbosa e o Homem-Aranha lá de casa se cruzaram ali. Tive vontade de estacionar o carro, perguntar o nome do menino-morcego, mas não o fiz.

 

 

"Todo dia ali e crê que a infância é só aquilo mesmo. Pedir e receber de quem tem culpa ou de quem é bem resolvido consigo e com a Cidade"

 

 

Fui até o jornal e decidi voltar, passar em um supermercado, comprar uma cesta básica e entregar ao filho da Gotham violenta do litoral. Fui. Andei entre a João Carvalho e a Heráclito Graça.

Nada do Batman, desapareceu feito Bruce. Refiz o percurso. Pedro, talvez, não sobrevivesse tanto tempo na esquina. Ou sim, a gente se acostuma. Todos os dias no sinal vermelho, fazendo o palhaço pedinte e a depender da piedade. 

O Batman riu feliz e me feriu o Coringa. Naquela miudez, magrelo, não mais que seis anos de idade, parecia satisfeito na esquina. Uma felicidade medonha.

Todo dia ali e crê que a infância é só aquilo mesmo. Pedir e receber de quem tem culpa ou de quem é bem resolvido consigo e com a Cidade. 

 

 

"Lelê, Tutu, Pedro, Saulo e Sarah, mesmo achando que viravam super-heróis eram mais protegidos do que protegiam a Gotham deles"

 

 

No prédio onde moro vai ter Halloween ou festa do Saci (acho que nem sabem que o Saci também faz festa no fim de outubro).

Além da cesta de comida para o Batman, comprei chocolates para meus vizinhos, Lelê e Tutu. Os pais compraram fantasias e vão bater na minha porta.

Lelê, Tutu, Pedro, Saulo e Sarah, mesmo achando que viravam super-heróis - quando se vestiam de Liga da Justiça ou Power Rangers - eram mais protegidos do que protegiam a Gotham deles. É como é pra ser.

O nome do Batman, descobri conversando com outros fantasiados da esquina da Rui Barbosa, é Daniel. Pede trocados e o que a gente tiver no carro e na alma. Entre a João Carvalho e a Heráclito Graça.

Todo dia, do 14º andar escuto seus gritos incompreensíveis do tumtum de um palhaço. Acho que é o mesmo Batman. O clown mais velho, mas que também tem um esqueleto de menino, repete algo empolado e indecifrável enquanto roda limões. Parece outra língua. 

 

 

"Por causa da "nova fome", do "novo normal" da fome. Uma família inteira de palhaços na Gotham Solar pede esmola no sinal"
 

 

 

A cesta? Entreguei para os irmãos Caleb (palhaço miudinho, quase preto e branco da fantasia encardida e esburacada de sol), a irmã Emanuelle e o irmão mais velho que não deu uma palavra. Desconfiado de mim, da possibilidade de algum abuso.

A família toda - pai, mãe e mais três irmãos - se retirou de Tianguá para Fortaleza. Por causa da "nova fome", o "novo normal" da fome. Uma família inteira de palhaços na Gotham Solar (ela não é sombria, mas é também assustadora) pede esmola no sinal.

Esta coluna, reconheço, é chata, culposa narrativa de autor. Texto pronto para ser lido para o psicólogo numa manhã (recorrente) de segunda-feira. Misturar infância sem proteção, passado não elaborado e vãos particulares e públicos...

Provavelmente, vou comprar uma cesta para o Batman da Rui Barbosa. Só isso. Comprei chocolates para ir além da necessária urgência do arroz, da farinha, do óleo... Ele é criança também e, certeza, sonha que pode voar feito o homem-morcego cheio de dramas existenciais (apesar de rico, justiceiro, e se achar a salvação de Gotham).

É mais ou menos isso, este texto ronceiro de Halloween, sacis, lobisomens, culpas e o Batman desprotegido.  

 

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