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Por todos os grilos também
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Por todos os grilos também

A atual geração de seres humanos não faz bem à Terra. Pode ser que os que nasceram há pouco escrevam outra história, mas o entorno deles tem de verter
Tipo Crônica
1212demitri (Foto: 1212demitri)
Foto: 1212demitri 1212demitri

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Talvez as meninas e os meninos que estão nascendo, agora, em alguma maternidade ou barraco por aí, tenham o desafio de salvar os grilos. Minha geração não conseguiu.

Não é derrota que estou arrulhando. Imagina. Há um povo feliz que viverá, até o último dia, brigando por um rio, um riacho e uma nascente.

Gente tachada de poeta que ressente no corpo a derrubada de uma árvore de calçada ou uma multidão delas na floresta.

Por esses dias, ou no começo do ano que vem, a Marquise derrubará o pequeno bosque da esquina da Pereira Filgueiras com Rui Barbosa, na Aldeota. Onde morou o Gerard Boris e o entrevistei por lá. Mais árvores serão mortas.

 

Quando nem se falava em "sustentabilidade", testemunhei atitudes de coexistência que eram consideradas "frescura". Isso na década de 1970

 

A minha geração, a dos meus pais e a de meus avós, só devastou. Salvo algumas exceções, feito o exemplo da dona de casa Maria Edmar Silva Araújo. Foi a primeira ambientalista de minha existência.

Quando nem se falava em "sustentabilidade", testemunhei atitudes de coexistência que eram consideradas "frescura". Isso na década de 1970, no calçamento do Porangabuçu e por onde convive com plantas.

As cascas das frutas e dos legumes viravam adubo natural. A borra do café também. Os restos do limão do quintal tiravam gordura e as buchas do melão São Caetano eram esponjas na louça.

Mamãe ficava possessa com monturo no fundo do terreiro e enraivecida, mais ainda, com quem tocava fogo no lixo e as labaredas de querosene queimavam uma banda da goiabeira e as palhas verdes da bananeira.

 

A minha geração é a da compensação ambiental, da venda e compra de carbono. Dos Termos de Ajustamento de Conduta e daqueles que acham que estão fazendo favor em plantar cinco árvores no lugar de uma longeva que foi morta

 

Para contornar a pindaíba, aprendeu a fazer "leite" e "carne" de soja. Fora que foi uma das mulheres de Zilda Arns, na periferia de Fortaleza, preparando e distribuindo a multimistura para quem passava fome e ameaçava morrer desidratado logo que nascia. 

Mas essa senhora é fora do padrão da geração dela e das que replicaram a indiferença e o preconceito ambiental contra a Terra e os outros seres vivos não humanos.

A minha geração é a da compensação ambiental, da venda e compra de carbono. Dos Termos de Ajustamento de Conduta e daqueles que acham que estão fazendo favor ao plantar cinco árvores no lugar de uma longeva que foi morta na calada da noite para subir um prédio.

É a mesma que concretou o Pajeú sem remorso e fez desaparecer os caranguejos e os cavalos marinhos do Cocó, no trecho das trilhas da Sebastião de Abreu e do Adahil Barreto.

 

A mesma espécie de gente que está aniquilando o Maceió e sufocando os peixes. Por ali, no requengo do Mucuripe, tem o Diêgo di Paula. Vive suplicando para cessarem a tortura ao riacho

 

Poluíram o Maranguapinho, o rio Ceará, o riacho Aguanambi, a lagoa da Parangaba, a da Maraponga, o rio Siqueira, o riacho da Rosinha e o Jacarecanga.

A mesma espécie de gente que está aniquilando o Maceió e sufocando os peixes. Por ali, no requengo do Mucuripe, tem o Diêgo di Paula. Vive suplicando para cessarem a tortura ao riacho, mas não há prefeito nem construtor que se afete.

A lógica desses homens e mulheres de "sucesso" é gerar PIB sem a participação dos calangos.

E se para isso for necessário passar a retroescavadeira e encher a caçamba com a areia das dunas da Sabiaguaba, tudo justifica e o judiciário referenda.

 

Uma geração que grilou dunas, loteou florestas e não suporta a Caatinga em pé

 

O que restou do Cocó demorou 40 anos para virar Parque. Parque é fazer cerca real e simbólica para evitar mais sanha. Fizeram shoppings e esgotos.

Uma geração que grilou dunas, loteou florestas e não suporta a Caatinga em pé.

João é filho da Yanna e do Fontenele. Veio ao mundo há pouco mais de dois anos. Há uma esperança na geração dele, mas desconfio que nem sua escola nem sua futura universidade nem o mercado o transformará em um homem da coexistência ambiental.

Precisará da sensibilidade para um mar sem toneladas de lixo de nossas cozinhas. Antes de João se transformar em um animal do "topo da cadeia alimentar", a mentalidade ao redor tem de verter.

 

Acredito na possibilidade do João, da Letícia, do Artur, do Benício, da Melina e de um magote de filhotes humanos, mas o entorno tem de mudar radicalmente

 

Por enquanto, fora as guerrilhas dos poetas, a Terra não conseguirá sair do destroço. Não adianta ter dó do Pajeú e continuar com bicho em gaiola ou solto no apartamento. 

Acredito na possibilidade do João, da Letícia, do Artur, do Benício, da Melina e de um magote de filhotes humanos, mas o entorno tem de mudar radicalmente. Por todos os grilos também.

 

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