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Jumentos e telefones públicos
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Jumentos e telefones públicos

Nunca acreditei que a Covid-19 nos colocaria no reverso do antropocêntrico, mas me animei quando a bicha quase derreteu o mundo na primeira onda. Uma chibatada mais certeira do que uma bolada de carimba nas ventas
Tipo Crônica
2301demitri (Foto: 2301demitri)
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O fim do mundo, talvez, não deva ser adiado. E acho um horror dizer isso porque é bom conviver, beijar na boca sem avareza, transar, fazer pegação e namorar. Mas fiquei pensando, o rio Cocó um dia voltará a ser bebida da nascente, no Boaçu, à desembocadura no Caça e Pesca?

Voltará não. E não é peitica nem derrotismo. Já imaginou arrancar o aterro do Jangurussu da zona proibida da Babilônia, do Gereba, do João Paulo II e de outras quebradas?

Um morto-vivo que mata o rio todo ano desde o tempo que existo?

O aterro do Jangurussu é diferente do aterro de Iracema e da Beira-Mar. Nenhum prefeito nem governador abriu licitação para empresários ganharem dinheiro com turismo e a gastronomia naquela bosta de lugar.

 

Não li nas manchetes dos jornais nem no Instagram, o mais novo Notícias Populares do momento, que no Jangurussu funcionaria a maior Biblioteca Pública Digital do mundo

 

E olhe que em Iracema e na Beira-Mar também há cocozinhos correndo para o Atlântico. Até na praia dos Crush. É só dá uma fungada no Maceió e no Pajeú.

Não li nas manchetes dos jornais nem no Instagram, o mais novo Notícias Populares do momento, que no Jangurussu funcionaria a maior Biblioteca Pública Digital do mundo. Falo grandioso porque somos hiperbólicos no Ceará. Tudo nosso é pauzão ou a gente mente que é.

Você crê na alfabetização das oficinas que despejam óleo nas águas? Ou que todos os homens, mulheres e meninos não jogarão mais pneus, penicos, latas de Coca-Cola, embalagens de Mcdonald's e cabeças de bonecas para os ex-peixes?

E um shopping de impacto zero ou um condomínio de luxo, no miolo do Parque, que não despeje xixi e cocô no rio dos outros?

 

Pensei que dali em diante, pelo menos um ínfimo iria se desmilinguir. Nem que fosse pelo medo de mais lutos sem velórios

 

Nunca acreditei que a Covid-19 nos mostrasse o reverso do antropocêntrico, mas me animei quando a bicha quase derreteu o mundo na primeira onda. Uma chibatada mais certeira do que uma bolada de carimba nas ventas.

Pensei que dali em diante, pelo menos um ínfimo iria se desmilinguir. Nem que fosse pelo medo de mais lutos sem velórios. Perder familiares, amigos inesquecíveis em caixões fechados... mas não. Nada foi reciclado. Ficou somente ausência, mas já nos acostumamos.

Falei do Cocó e poderia ter narrado sobre os tocos de árvores cortados nas calçadas. Dos idosos. Do feminicídio desenfreado ou da imbecilidade de ser um antivacina feito a sem noção da Elizangela.

Nesse sistema da anticonvivência, as coisas e seres vivos vão perdendo a existência. Os jumentos e os telefones públicos são o desencanto. Já sinto demais pela fome dolosa.

 

Perderam a utilidade e, porque agora são de graça, não valem nem uma cibalena. Os telefones públicos andam melancólicos nas esquinas, cabisbaixos

 

Ande na rua e pergunte a algum telefone público! Eles estão derrotados, o azul já desbotado, os números sumindo. Ninguém ou quase nenhum celularizado faz a gentileza de usá-los.

Perderam a utilidade e, porque agora são de graça, não valem nem uma cibalena. Os telefones públicos andam melancólicos nas esquinas, cabisbaixos.

Tivesse um quintal levaria todos para minha convivência. Não tenho latifúndios, queria a serra da Aratanha para enchê-la, também, de telefones públicos e jumentos.

Também os jumentos. Convidaria todos para comer milho e beber água fresca na minha poligonal. Morassem lá.

 

Nunca se conformaram por perder a utilidade de jumento. Trocados por motocicletas? Vão enlouquecer na mesma merencória dos telefones públicos.


Feito os abandonados telefones públicos, os jegues vagam pelas rodovias do Semiárido à procura de barroarem.

Nunca se conformaram por perder a utilidade de jumento. Trocados por motocicletas? Vão enlouquecer na mesma merencória dos telefones públicos.

 

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