Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Na penúltima crônica, um desejo pelo fim dos padrões repetidos todos os anos e a vidinha quase toda da gente. Uma vontade guerrilheira contra o que não vige
A última semana de 2020-2021 está se acabando. Junto os dois anos porque podemos considerá-los uma jacobice só. Se em 2018 iniciava uma quimera, nem prevíamos que algumas criaturas estariam celebrando apenas por chegarem vivas em 2022 e, porventura, 2023.
Minha tendência, se eu tivesse o fogaréu do Lampião ressuscitado, era convocar o Exército dos Mortos para estrategiar uma guerrilha. Apodrecer todos os velhos padrões, inclusive os meus e acabar duma chibatada a falsídia dessa vidinha repetida a cada virada cartesiana.
Vou dar a real, queria escrever sobre fofurices de Natal e fazer listas do que espero mudar no ano que vem. Ou do que aprendi com a pandemia (aff!). Porém minhas fofoletes foram todas violentadas por cupins machos.
Cupins, por sinal, que invadiram meu apartamento privilegiado, na Santos Dumont com Virgílio Távora, porque dois empreendedores resolveram fazer negócio e machadar um bosque em frente aqui de casa.
A morte natural, vivida até a última colherada de fel ou de ambrosia, merecerá sempre um Carnaval. Um Kurosawa roteirizando e dirigindo o primeiro dia da partida
Imaginou os mais de 600 mortos da Covid-19 voltando para cobrar o que perderam porque não tiveram o direito de tomar uma vacina a tempo? Não falo das criaturas bem antigas, idosas, 90 para cima, talvez. Essas viveram, pena que não tiveram no finzinho uma despedida foguetória.
Um forró para comemorar o fecho. Uma missa, um culto, uma gira, um samba apabullante da gramática falível deixada por elas. Desses desaparecimentos, o engasgo foi terem ido sem nenhuma quermesse.
A morte natural, vivida até a última colherada de fel ou de ambrosia, merecerá sempre um Carnaval. Um Kurosawa roteirizando e dirigindo o primeiro dia da partida e as cartas de saudades e memórias inventadas. Sim, um choro pela ausência poderá ter, mas não infinito.
Já pensou se o Exército de garotas e de garotos esfolados na Era das facções criminosas, e das polícias matadoras de periferia, voltar no Ano Novo que vem para exigir o que lhes foi tirado?
Eu tenho sonhos sem oxigênio, recorrentes, com essas pessoas interrompidas. Elas perguntado por que o jornalismo investigativo e a meritocracia não as salvaram dos assassinatos da juventude (nas favelas)
A escola de qualidade ou particular na Aldeota-Cocó, casamento, a possibilidade de comprar um Porsche no Iguatemi? A capacidade que lhe assaltaram de também ser um consumidor siderado nas festas do ano inteiro?
Eu tenho sonhos sem oxigênio, recorrentes, com essas pessoas interrompidas. Elas perguntado por que o jornalismo investigativo e a meritocracia não as salvaram dos assassinatos da juventude (nas favelas).
E eu tenho silêncios, fico degradando feito uma termoelétrica do Pecém. Um incêndio no Pantanal.
Não são zumbis eles, eram meninas e meninos, moças e rapazes.
Uma vez, uma galera deles estava no "marketplace" do meu prédio. Querendo comprar, mas não tinham códigos de barras. Nunca tiveram, na verdade. Se exumaram para cobrar o direito de assistir Martix Resurrections ou o Homem Aranha: Sem Volta Para Casa.
Esta crônica (nem sei se a narrativa é uma crônica) está meio fora da "ordem do dia natalino" - expressão dos idiotas que adoram um autoritário para se submeter
Não deu tempo e eles, por só perderem todos os anos e nos Natais, retornaram para acertar as contas e saber por que também não viraram construtores de prédios na Beira Mar nem encontraram o tal paraíso prometido para os humilhados.
Esta crônica (nem sei se a narrativa é uma crônica) está meio fora da "ordem do dia natalino" - expressão dos idiotas que adoram um autoritário para se submeter.
E é porque não convoquei nem o Exército dos desaparecidos políticos, dos indígenas, dos escravizados, das mulheres assassinadas por machistas, de Marielle Franco e outros orixás.
Desejo para nós, no ano que vai nascer, que o elefante deixe de entrar no quarto de adormecer da gente e pare de se deitar em cima de nós à noite toda. Basta
Imaginou esse mundaréu de povo voltando para apodrecer os velhos colhões e fazer chanfanas no palácio da Abolição, do Paço, da PGR, da Justiça Federal, do TJCE, da Basílica de Aparecida, do MPCE, do Palácio dos Bandeirantes, da Receita Federal, do Planalto, da imprensa, das redes sociais e universidades?
Desejo para nós, no ano que vai nascer, que o elefante deixe de entrar no quarto de adormecer da gente e pare de se deitar em cima de nós à noite toda. Basta.
É um desejo sincero, um avesso da utopia.
Muitos beijos e abraços nos pontos fracos (e fortes) de nossos corpos precisados.
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