Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Basta eu lembrar do gosto e qualquer hora do dia se transforma em 11 horas da noite ou meia-noite, há 45 anos. Horário em que meu pai regressava.
Meu pai nem sabe, mas ele fez a fome ter o sabor de uma torta ordinária de abacaxi que trazia para casa perto de virar o dia.
Porangabuçu, em algum lugar dos anos da década de 1970, nesta ditadura.
Cara lembrança.
Escrevo estas linhas digitais para buscar na língua o gosto de uma torta ordinária de abacaxi nas papilas gustativas do tempo perdido de Proust.
Quando o gás amanhecia no fim, e minha avó acendia uma vela debaixo do botijão, era dia de pindaíba mais arrochada
Éramos seis pivetes, mais minha mãe, minha bisavó, vó e vô paterno. Passar fome não tinha só derrotas.
Quando o gás amanhecia no fim, e minha avó acendia uma vela debaixo do botijão, era dia de pindaíba mais arrochada.
Não tomávamos café, não almoçávamos, merenda não existia nem janta. E uma alegria, não íamos para as aulas no Redentorista. Mamãe tinha medo que déssemos agonia. Infelizmente, porém, era proibido brincar com a fome.
O fogareiro era tirado da despensa. E, envergonhados, íamos comprar carvão fiado na casa de uma senhora velha. Tinha a chave de um quartinho encardido nos fundos do bairro.
Era uma expectativa, vigiávamos o barulho dos poucos fuscas da rua. O de meu pai tinha a descarga furada
Comprávamos uma lata grande e trazíamos em um saco. O pai saia puto para arranjar dinheiro para o gás, o feijão e a mistura até o meio-dia.
- Seis bocas para alimentar. Puta-que-o-pariu! Seis não, onze... Porra!
E eu tinha medo de me olhar no espelho. Uma boca!
Era uma expectativa, vigiávamos o barulho dos poucos fuscas da rua. O de meu pai tinha a descarga furada. Mas nada. Do basculante, olhávamos a hora do racha e mamãe não deixava rachar. Claro.
- Ele vem que horas, mãe?
- Tá perto dele chegar?
- Quando a gente vai comer?
- Cala a boca, se os vizinhos escutam... Calados.
A fome, tem uma hora, esmorece o corpo e vai alucinando até pegar no sono. Mas perto da meia-noite, mamãe sussurrava.
- O pai de vocês chegou, tem bolo de abacaxi.
- Torta, mãe. Torta. Vovó Donald chamava assim e colocava na janela para esfriar.
A torta ordinária de abacaxi era molhada com um falso caramelo. Açúcar queimado derramado por cima do bolo retângulo. Rodelas enormes e um cheiro que, no outro dia, atraía os arapuás para o monturo no quintal.
As migalhas para o gato e um pedacinho para a menina. Uma vizinha que trocava beijos na boca por qualquer coisa que fosse comer
Comia devagar, mordidas lentas e os botões gustativos acendendo e apagando na ponta e dorso da língua. Quase gozo.
As migalhas para o gato e um pedacinho para a menina. Uma vizinha que trocava beijos na boca por qualquer coisa que fosse comer. A rua não era de gente abundante.
Uma língua com gosto da torta ordinária de abacaxi, enfiada quase na goela, e o pau miúdo feito pedra se entortando no calção sem cueca.
Quarenta e cinco anos depois, tenho vontade de levar uma torta ordinária de abacaxi para o menino miúdo que se veste de Batman na Rui Barbosa com João Carvalho, na Aldeota.
Sei que estão se humilhando. Mal escuto. Mas ouço, entre os versos sem rima nem erudição, a fome declamar
Ele e o pai bodejam no sinal vermelho uma língua que não consigo traduzir do 14º andar de onde, às vezes, penso em voar. Sei que estão se humilhando. Mal escuto. Mas ouço, entre os versos sem rima nem erudição, a fome declamar.
- Acorda, teu pai chegou. Tem um pedaço de bolo de abacaxi com Coca-Cola. Um pedaço para cada um. Ninguém pode repetir.
- É torta, mãe. Torta. Vi na revistinha do Tio Patinhas.
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