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Coração vermelho no concreto
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Coração vermelho no concreto

Uma crônica sobre a necessidade das paixões e dos amores na vida dos outros
Tipo Crônica
3001demitrii (Foto: 3001demitrii)
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Vou falar um pouco sobre os minutos antes de escrever esta crônica. Também tem parte com paixões e amores. Pelo WhatsApp, converso com meu amigo Carlus Campos. Ele é a outra metade do que sai nesta página, sensibilidade pura.

Digo a ele, "Carlão, ainda não chovi e não veio texto algum. Está cheio de nuvens carregadas, mas não chovo. Escuto o trovejado, sinto o relampagar, mas não sangra o Orós". Segura um pouco.

Volto às palavras e sugiro que crie um coração enorme cheio de saídas e entradas. E por elas entram e saem rios, pássaros, rosas vermelhas enormes, árvores. Vou escrever sobre paixões e amores, talvez.

 

Volto para escrever e rabisco: vou partir a geleira azul da solidão, me agarrar na mão do mar, me arrastar até o mar, procurar o mar...

 

Minutos depois penso que as paixões e os amores não são somente surpresas boas. Volto a perturbar Carlus. Bota também arames farpados, alfinetes, canhões, facas de cortar pão, amassadores de alho. É até clichê e vai encontrar um desenho de Frida. Mas como somos instantes e gosto, deixo dito.

Volto para escrever e rabisco: vou partir a geleira azul da solidão, me agarrar na mão do mar, me arrastar até o mar, procurar o mar... escuto Milton, Elis e Zizi Possi rasgando Corsário. Meu coração tropical está coberto de neve...

E onde está a crônica? Uma chuvinha triste não para no 14º andar desde a madrugada de ontem. Levanto e faço a barba, tiro um rosto meio que não reconheço. Provo o sangue na lâmina cega e a língua se anima. A música bonita do Milton, mas escrota, repete uma ladainha.

 

Ela me sugere que escreva sobre aquele coração vermelho, vivo, que tu encontraste no Cocó e postou no Insta. "Amor também rebrota a gente", ela faz poesia

 

Zizi canta com João Bosco e eles fumam um cigarro molhado na chuva. E a crônica de hoje? Escrevo para a Ana Mary C. Cavalcante, uma amiga escritora. Uma Clarice. Não, não. Uma Ana Mary. Peço que me acuda um texto.

Ela me sugere que escreva sobre aquele coração vermelho, vivo, que tu encontraste no Cocó e postou no Insta. "Amor também rebrota a gente", ela faz poesia. E o coração encarnado ainda vive? Então, cai de boca no amor, melhor que paixão. Não há possibilidades sem os dois.

O coração vermelho encontrei-o no concreto da ponte sobre o Cocó. Batia de verdade. Ainda bate, pode ir lá. Está na ponta do cimento e do ferro que precisam ser maleáveis para aguentar o repuxo.

 

Respondo que gosto do amor, mas as paixões são um coração pichado no concreto da ponte. O coração é que se derrete com as chuvas, amores não

 

Coração querendo pular da ponte, querendo o mar. Penso, de novo, nas definições de paixão e amor da Ana Mary. Ela é poeta e descobriu como traduzir as garças. Passa o dia querendo um céu.

"Amor é chuva que nos rebrota, um sereno que seja e já faz florescer. Paixão transborda a gente, feito açude que sangra e vai derramando vida pelo corpo inteiro. Amor e paixão misturados é encontro de rio com mar". Ela me escreve. Eu vejo a maré encher.

Pode ser. Respondo que gosto do amor, mas as paixões são um coração pichado no concreto da ponte. O coração é que se derrete com as chuvas, amores não.

 

Isso não é uma crônica. Pode ser. É, talvez, uma narrativa de um corsário preso jogando garrafas, com mensagens, ao mar. É a poesia de Milton pra gente ir indo

 

No Cocó, há amores e paixões. Se não fosse desse jeito, ninguém sobreviveria toda segunda-feira.

Ela me diz que o texto pede mais tropos. Vou ao dicionário e decido catar mais translações, mas decido encerrar o texto e enviar para Fátima. Já passam das 21h26min, peço desculpas. Um janeiro de chuva.

Isso não é uma crônica. Pode ser. É, talvez, uma narrativa de um corsário preso jogando garrafas, com mensagens, ao mar. É a poesia de Milton pra gente ir indo.

 

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