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Correr perigo, viver
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Correr perigo, viver

Uma crônica para Renan Lima, Moise Mugenyi Kabagambe e René Roberto. Mortos pela indiferença, o gelo e a bala
Tipo Crônica
0602demitri (Foto: 0602demitri)
Foto: 0602demitri 0602demitri

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Tenho pressa de viver. Coração Selvagem anda me azucrinando. E muita brutalidade normal, também. Ana Cañas, eu poderia ter sido o ator namorado de seu videoclipe. Sou feio, mas meu corpo se movimenta daquele jeito quando o desejo dita. Acho que ainda tenho algo para receber o cavalo.

Talvez eu morra jovem numa ou duas balas de um assalto ou alguém da facção que decidiu me desaparecer porque andei em caminho "errado". Feito o professor de lutas, pardo, Renan Lima, em Fortaleza, de 26 anos.

Ninguém fez manifestação nem repostou Renan Lima das artes marciais (bruta também) da periferia. Quem se importou além da família dele e de alguns amigos?

 

Era para o Rio parar, mas está acostumado. Feito o Ceará e a cota normal de assassinados por dia e todos os dias

 

Talvez eu seja morto pela violência nojenta de milicianos cariocas contra o congolês Moise Mugenyi Kabagambe, 24 anos, no Rio de Janeiro. Cidade tão linda e tão escrota para morrer porque se é negro ou "vagabundo". Não?

Era para o Rio parar, mas está acostumado. Feito o Ceará e a cota normal de assassinados por dia e todos os dias.

E o cara, Moise estrangeiro, pensou que estava salvo da violência do Congo aqui. Foi cobrar diárias trabalhadas. Parece que a reforma trabalhista deu certo, mesmo, e quem for cobrar o que a lei afrouxou vai levar porrada até parar de respirar. Parabéns deputados e senadores!

 

Talvez não morra jovem, mas não queria a morte de René Robert, 85 anos. Fotógrafo suíço combalido pela frieza da indiferença parisiense num frio de 9 horas no chão

 

Preferirei, mais trágico romântico, algum punhal de amor traído quando tiver sendo tocado pelo gozo rasgante de uma mulher toda dentro de mim. Não me importaria com esse destino completado.

Talvez não morra jovem, mas não queria a morte de René Robert, 85 anos. Fotógrafo suíço combalido pela frieza da indiferença parisiense num frio de 9 horas no chão e ninguém, nenhuma mão para acudi-lo de um passamento curável.

Nem brigou com a morte. Observou-a vir vindo durante cinco horas de consciência sem fala, sem gesto e gelo.

Deve ter visto os pés da Paris pra lá e para cá, urbanidade do amor. Coitado. Imagino o vento nos ossos e a saudade de viver indo fugida.

Eu quero corpo, tenho pressa de viver.

 

Para Ouvir| 

Ana Cañas - CORAÇÃO SELVAGEM (Videoclipe Oficial)

 

Mas quando você me amar, me abrace e beije bem devagar que é para eu ter tempo de me apaixonar, tempo para a turma do outro bairro vir e saber que eu te amo.

O meu coração, cuidado é frágil, tem essa pressa de viver.

Daqui para frente, estou parado, vendo e escutando Ana Cañas dançar Coração Selvagem com Lee Taylor. Num esfrega bom, romântico, que dá vontade de fazer parecido. É brutalidade amorosa da letra de Belchior.

 

Por Renan Lima, por Moise Mugenyi Kabagambe, por René Robert, assassinados pela falta de um Coração Selvagem nos outros, nas ruas, na vida privada

 

Meu bem, mas quando a vida nos violentar, pediremos ao bom Deus que nos ajude. Falaremos para a vida, vida pisa devagar. Meu coração, cuidado, é frágil. Meu coração é como vidro, como um beijo de novela.

Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão, o meu som, a minha fúria. E essa pressa de viver. Esse jeito de deixar sempre de lado a certeza e arriscar com paixão. Andar caminho errado por uma simples alegria de ser.

Por Renan Lima, por Moise Mugenyi Kabagambe, por René Robert, assassinados pela falta de um Coração Selvagem nos outros, nas ruas, na vida privada.

 

Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo. Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano o que virá eu não morrerei

 

Há outros perigos para se correr sem precisar matar ninguém de indiferença, bala ou porrada.

Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo. Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano o que virá eu não morrerei.

 

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