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Corpo avoante
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Corpo avoante

E se Clarice e Drummond tivessem sido apaixonados um pelo outro, o mundo seria mais cheio de crônicas e poemas? Ou talvez as segundas-feiras?
Tipo Crônica
Corpo avoante (Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Corpo avoante

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É assim, quando emperro num texto, abandono tudo e vou escutar Maria Bethânia dizer Diadorim do Guimarães. E a vontade de plagiar, confesso, não é pequena. Cada palavra, cada frase e a pontuação.

Porque de tanto ouvi-la e até ver o tal amor não caber na vida, daí a escrita pela necessidade desesperada de eternizá-lo, pode ser que eu entre num transe da crônica para desempacar.

Tão bonito o apaixonamento das palavras que nem me lembro da guerra, aqui, na real. Entro (dentro) noutra dimensão. Pode ser uma função menos acadêmica da literatura, fazer você se desencontrar da realidade nojenta. Ou enxergá-la menor que a ficção.

 

A pintora de quase oito décadas de existência estava no meio de uma manifestação contra o machismo de mais uma guerra fálica

 

Da guerra contra a Ucrânia a única coisa amorosa que li, nessa saraivada de informações torturantes, foi sobre Elena Osipova, presa aos 78 anos pelos truculentos da polícia de Putin, em São Petersburgo.

A pintora de quase oito décadas de existência estava no meio de uma manifestação contra o machismo de mais uma guerra fálica. Putin não é uma criatura que vá fazer falta aos ciclos do universo altruísta.

Osipova me fez, por alguns minutos, largar a recusa e ler sobre a maldade desnecessária de tirar a vida dos outros num bombardeio ou por causa de um tiro com a bala mais tecnológica e dilacerante.

 

Imagina a falta de amor em Leningrado, 900 dias de morre-não-morre, de vive-não-vive. A expectativa do estupro, da impossibilidade de abraçar alguém sossegado

 

Dona Elena Osipova é uma sobrevivente da 2ª Guerra Mundial, saiu viva do cerco nazista a Leningrado (1941 a 1944) ainda no começo da vida e as famílias acossadas pelos espreitadores da morte alheia.

Imagina a falta de amor em Leningrado, 900 dias de morre-não-morre, de vive-não-vive. A expectativa do estupro, da impossibilidade de abraçar alguém sossegado, de não viver uma paixão porque a vida dali em diante estava em suspense.

O poder da maldade é tão arriscado que passei a ter receio de quem porta nos carros ou nas janelas dos apartamentos, bandeiras do Brasil.

 

E se ali tiver uma criatura que não aceita o beijo entre duas mulheres? O pessoal do "antes uma boa morte, a ter um filho baitola"?

 

Há uma desconfiança que ali haverá alguém armado ou que acha natural "vagabundo" ser caçado, morto e ter o "CPF cancelado". Parece coisa de nazista.

E se ali tiver uma criatura que não aceita o beijo entre duas mulheres? O pessoal do "antes uma boa morte, a ter um filho baitola"? Os cristão que expulsam padres ou perseguem "comunistas"?

Não confio a minha vida a quem porta essas bandeiras e se opõe à vacinação contra a Covid-19. Ou goza com falta de bondade do presidente. O nome dele já é sinônimo de maldade nos dicionários.

 

Antes que este texto me leve para o holocausto, eu escapo pelo céu sem bombardeios. De garças e outras levezas (é possível também)

 

Imagina esse país num cerco de mais quatro anos de desamor, de estímulo à extinção de indígenas, de fogo criminoso, milícia, garimpo ilegal e desmatamentos, de misoginia? Não precisamos de Leningrado nem da guerra atualizada.

Antes que este texto me leve para o holocausto, eu escapo pelo céu sem bombardeios. De garças e outras levezas (é possível também).

Da minha janela, do 14º andar sem asas, alcanço o olhar perdido de uma amiga. Ela está do outro lado da cidade. Lá, há beija-flores no corpo e no coração avoantes dela.

Minha amiga avoa quando está apaixonada. Também sou afeito a uma arribação. Por esses dias, de guerra e resistência feito a de Elena Osipova, ela me atravessou perguntando:

E se Clarice e Drummond tivessem sido apaixonados um pelo outro, o mundo seria mais cheio de crônicas e poemas? Ou talvez as segundas-feiras?

 

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