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A pedagogia da torpeza
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

A pedagogia da torpeza

As palavras empregadas com ruindade, o conjunto de expressões brutas, o gestual do escárnio, são da cartilha do ódio disseminado. Um manual com a assinatura de quem goza com a ruindade pela ruindade e o interesse sovino
Tipo Crônica
1906demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1906demitri

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A morte faz a gente sentir falta de algumas criaturas. E quando vem carregada de inesperados e ruindade, o pesar aprofunda. Sinto falta de ouvir as reclamações de Gilmar de Carvalho. Sua inadequação ao cotidiano. Chegava a ser ranzinza, mas era como via o mundo e a falta de ilusão sobre as coisas entortadas para beneficiar alguém ou grupelhos políticos e da cultura.

A forma como morreu, sem ter direito à vacina contra a Covid-19 porque o governo Bolsonaro negou até quando não podia mais, segue a mesma batida dos assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Araújo Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips. É a pedagogia da peçonha.

Gilmar, mais de 600 mil brasileiros, Bruno Araújo, Dom Phillips e um bocado de anônimos foram mortos pela crueza e espalhamento da maldade estimulada no Brasil presidido por uma criatura sem empatia.

 

Foram centenas de palavras e expressões usadas por Bolsonaro, repetidas por seus ruins, para sacanear com quem foi enterrado sem velório e vacina

 

A palavra é entidade, se manifesta. Chamar um filho ou uma filha de "diabo", dizer que "não têm futuro" ou enfiá-los no glossário machista de criação, dará na existência de homens e mulheres escrotos. O preconceito e o moralismo definindo as relações brutas e até a eliminação do outro.

Gilmar e outros foram mortos no escárnio de um presidente fazendo mungango com a falta de ar de quem estava precisando de oxigênio em UTIs, no pico dos caixões lacrados da Covid-19. Foram centenas de palavras e expressões usadas por Bolsonaro, repetidas por seus ruins, para sacanear com quem foi enterrado sem velório e vacina.

O professor Gilmar, nos últimos dias de sufoco entre lutar para ficar e ser retirado brutalmente aos 70 e poucos anos, nem soube da mãe adotiva - dona Maria. Foi também abatida pela Covid-19, no Waldemar Alcântara, e acabou enterrada indignamente.

 

Foi a palavra dele que também esgarçou o que já era uma desgraça para indígenas e outros povos no Vale do Javari - onde a "arminha" é lei

 

Bruno Araújo e Dom Phillips foram executados pelo dicionário permissivo de um capitão reformado do Exército ainda gozante com as atrocidades de uma ditadura militar bosta. Foi a palavra dele que também esgarçou o que já era uma desgraça para indígenas e outros povos no Vale do Javari - onde a "arminha" é lei.

Repórter sério sempre será "mal visto" por garimpeiros, por milicianos, por madeireiros, por quem pesca e caça ilegalmente, por construtores civis que desmatam na cidade ou na floresta, que destroem habitas e grilam dunas e praias.

Nunca será benquisto por policiais que executam inocentes ou "vagabundos" com tiros na cabeça. O repórter nunca será uma pessoa confiável para políticos que apoiam o que se deu, por exemplo, na Chacina do Curió e seus 11 executados.

 

Discurso de ódio, a ruindade, dá em passarinho caçado e morto de baladeira. Dá em tortura. Dá em desmatamento, dá em indígena sendo extinto

 

Nem bolsonarista nem general dissimulado é para confiar em repórter sério, não. Porque ele irá, sim,  continuar denunciando a barbárie e a conivência com o absurdo.

Discurso de ódio, a ruindade, dá em passarinho caçado e morto de baladeira. Dá em tortura. Dá em desmatamento, dá em indígena sendo extinto. Dá em rio sendo aterrado no lixo, dá na fome miserável, dá em bicha sendo estrangulada.

Dá em feminicídio. Dá em menino preto e favelado executado antes dos 18. Dá em ditadura militar e civil. Dá em desaparecidos políticos até hoje feito Jana Barroso e Antônio Teodoro de Castro.

 

Nem bolsonarista nem general dissimulado são é para confiar em repórter sério, não. Porque ele irá, sim, continuar denunciando a barbárie e a conivência 

 

Palavra de ódio dá na PM assassinando Mizael Fernandes, 13 anos, enquanto dormia. Dá no fuzilamento de uma família inteira, acuada no pé de poste, na tragédia do assalto em Milagres.

Dá no assassinato de Chico Medes, da irmã Dorothy Stang, na pistolagem contra José Maria de Tomé, de Marielle Franco e Anderson Gomes. Dá no preconceito contra Dandara dos Santos. Dá na brutalidade, inexplicável, contra Genivaldo dos Santos.

Discurso de ódio nasce assim, aparentemente sem intenção de perversidade. Em nome do cidadão de bem, da família cristã, da pátria e de um Deus classista, macho, rico, apenas branco e que "compraria uma pistola".

 

Um gozo nojento, ódio descarado contra quem tem de ser eliminado das convivências. Chega rir e ainda grava um vídeo da própria imbecilidade humana

 

A malvadeza se faz, é ferina por nascimento, feito o gesto arrogante do empresário Beto Studart que mandou cunhar uma faca, uma arma para proteger "a pessoa de bem", com a cara do narciso dele mesmo.

Um gozo nojento, ódio descarado contra quem tem de ser eliminado das convivências. Chega rir e ainda grava um vídeo da própria imbecilidade humana.

A gramática do ódio nasce assim e se espalha com a melhor das intenções...

 

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