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Doce de banana e palavras
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Doce de banana e palavras

Hoje a crônica é puro doce de banana, uma doçura de gentileza endereçada por uma leitora da coluna.
Tipo Crônica
2606demitre (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2606demitre

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Uma leitora tem o costume generoso de me mandar porções de doce de banana. A Rosa, ou dona Rosa, é mãe de uns amigos - o Marcos Sampaio e o Hamilton.

Ela faz das frutas do quintal. Ou inventei isso para tornar o doce mais delicioso do que já é, porque tenho ausências de quintais. Careço de terreiros com bananeiras, goiabeiras e galinhas numa Cidade adoecida.

Ela lê a crônica, uma gentileza também, e me diz que tem vontade de me presentear com o doce das bananas do terreiro fabulador.

 

Há mimos que a avareza do bem é imperativa, é só lembrar do último pedaço do chocolate. É um pecado dividi-lo

 

Das bananas que os sanhaçus, os sibites e as saís azuis bicam, ela faz o feitiço e manda para a Redação do jornal. Sovino, coloco-o no mocó. No meio das tralhas do computador, para não dividir com ninguém. Hahahaha...

Há mimos que a avareza do bem é imperativa, é só lembrar do último pedaço do chocolate. A porção saborosa porque está no fim. É um pecado dividi-lo. E o derradeiro gole de Coca-Cola, com bolo da tarde? Não se reparte nunca. Desculpe, mas não.

Rosa, fico enfeitiçado, é de uma blandície que não sei dizer o tamanho da atenção. Ele emprega parte do  tempo dela para levar as bananas ao fogo. Espera o ponto do açúcar, guia-se pelo cheiro, esfria-o e numa cumbuquinha e me endereça a doçura.

 

Claro que fiquei com palavras engasgadas, meio abestalhado com a delicadeza, mas as asas dos calcanhares batiam sem parar

 

É como comprar um presente pra alguém. Presente de verdade, não protocolar, é afeição. Presentear alguém é primeiro se presentear. Claro, se o "cadeau" estiver tomado por satisfações do presenteador. É gozo indo e voltando.

Assim, feito dona Rosa, tem também o Alexandre Ciadini. Certo dia, ele entra na Redação do O POVO e me abraça com a coleção (inteira) do Manoel de Barros. Claro que fiquei com palavras engasgadas, meio abestalhado com tamanha delicadeza, mas as asas dos calcanhares batiam sem parar.

De uma gentileza que nunca retribui, feio para mim. Fiquei tão encantado com a sensibilidade do economista. Por que Cialdini se daria o trabalho de me oferecer um Manoel de Barros?

 

Para quem perde a utilidade nem tem poder de consumo haveria uma destinação para o lugar dos troços mortos, uma sentença

 

Pensamento idiota, tenho de aprender a receber e pronto. Agradecer com as asas de todos os pássaros e degustar página por página os poemas do pantaneiro. Já tinha quase tudo do Manoel e curti, mesmo assim, e me tomei novamente da avareza com mais livros.

Engraçado, Manoel de Barros, quase todo mundo reverencia sua fofurice. E há sim doce de banana feito de Rosa nos poemas, mas ele voa mais. Fresca com a bestialidade de quem acha que pessoas, bichos, plantas e coisas têm um prazo de validade.

Para quem perde a utilidade, além do poder de consumo, haveria uma destinação para o cemitério dos troços. Uma sentença escrota. Manoel dá uma chibatada no beco sem saída do capitalismo e faz um protesto poético. Isso é outra crônica, outra prosa.

 

Por falar em capitalismo, dedico a crônica à Sandra do Crítica Radical. A moça, companheira de ruas e de amores Rosa da Fonseca, resolveu ser saudades

 

Também recebi uma Clarice Lispector do Luiz Alves Araújo, "A procura da própria coisa". muito merci. E uma lata de doce de visgo da Ester Barroso - a primeira comunista presa, em 1964, em Fortaleza... Uma guerrilheira.

Por falar em capitalismo, dedico a crônica de hoje, também, à Sandra Helena do Crítica Radical. A moça, companheira de ruas e de amores Rosa da Fonseca, resolveu ser saudades. Menos de um mês da partida de Rosa, ela se foi também.

O rasgo de saudade de um amor partido. Só pode. Sei que existem as doenças, Daniel Fonseca, e o corpo da gente se derrete a cada segunda-feira, mas era tão moça a Sandra.

 

Rosa (que foi primeiro) e Sandra (depois), quero crer, são de outro naipe o amor delas. Flores raras e banalíssimas

 

Criança, eu ouvia muitas histórias de um avô que morreu dias depois, semanas, um mês, após a esposa falecer. Ou o contrário. Um vindo buscar o outro porque ficar aqui havia perdido o lampejo.

Acreditava porque gosto também de histórias póstumas de se beijar, mas havia muito velho bruto, muito marido desamoroso a vida toda. Velhas também ruins, carne de pescoço. E ficava matutando se a morte e a ausência tinham "desarruinzado" esse povo.

Rosa (que foi primeiro) e Sandra (depois), quero crer, são de outro naipe o amor delas. Flores raras e banalíssimas. Pois que se encontrem se houver outro lugar depois daqui.

 

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