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Inflorescência indefinida
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Inflorescência indefinida

Há várias árvores e frutos da memória, por setembro o tempo do caju amiúda os olhos nas rugas, balança o corpo na ventania
Tipo Crônica
2509demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 2509demitri

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Vou ali apanhar caju no mangue. A cidade está cheia da fruta da infância, tanto nas esquinas - vendidas por homens queimados do sol da primavera em Fortaleza - quanto nas ruas, nas feiras, terrenos, em jardins e em povoados sustentados pela castanha. Pacajus!

Não me lembrou quem me apresentou, quando criança, a fruta do cajueiro. Conheci a maioria dos frutos com quem convivo até hoje, desde quando me chamavam de menino. Teria sido meu pai o cicerone, um apaixonado por tirar frutas no pé e comê-las se melando, fazendo nódoas e inventando sucos.

Havia o prazer dele em repetir que o fruto era a castanha, o pedúnculo era o detalhe. E eu tinha pena da falsa falta de importância da "carne" travosa ou doce, surpreendente, do caju vermelho ou amarelo.

 

A castanha, aparência de uma venta, alimentava um ritual indígena caboclo no terreiro lá de casa

 

A definição de "pedúnculo" é uma poesia. Haste ou suporte da flor, do fruto. Tipo de inflorescência indefinida, em cacho, onde todas as flores se inserem no mesmo ponto. No animal é o fim do estirão onde se desenha a barbatana nadadora do rabo.

A castanha, aparência de uma venta, alimentava um ritual indígena caboclo no terreiro lá de casa. Ao redor de uma lata grande rasgada, devidamente furada e uma fogareiro feito de tijolos velhos, nos alvoroçávamos no assamento das amêndoas guardadas há semanas.

Um fogaréu feito de pedaços de galhos secos da goiabeira e palhas da bananeira. Querosene para tocar fogo e uma vara longa pra mexer as castanhas que papocariam "leite" e um magote de criança pinotando.

 

Despelicar é um verbo inventado em Chorozinho e no Porangabuçu, bairro pretensioso contra o português boçal

 

Depois, com as castanhas pretas de assadas, meu pai jogava areia no "flande" e as cobria por alguns minutos. Era para esfriá-las. Aí, começava a retirada da casca grossa e o "despelicamento" do miolo.

Despelicar é um verbo inventado em Chorozinho e no Porangabuçu, bairro pretensioso contra o português boçal. É o mesmo que despelar. Tirar a pele fina que reveste a castanha e, se deixá-la, vira um amargor.

Comíamos a castanha assada no quintal mesmo, sentados em tijolos frios, no batente do terraço da cozinha ou em cima das raízes do pé da goiaba. Unhas pretas da tisna no pedúnculo, dentes encardidos e sopros para retirar algum grão de terra.

 

Era um acontecimento a euforia de apanhar caju, voltar com um saco cheio, cheirar o doce sendo feito e a casa toda tomada

 

Ir ao mangue colher caju é uma volta à criança. Sem nostalgias. Pai, talvez, não seja só abandono e relacionamento abusivo. Veio dele uma parte do existir. Quando nego, o caju trava na boca. A castanha queima tanto na trempe que vira carvão.

Era um acontecimento a euforia de apanhar caju, voltar com um saco cheio, cheirar o doce sendo feito e a casa toda tomada. Porém não bate com a falta do homem que, docemente, apresentou a fruta e, anos depois, sumiu.

O cajueiro, árvore das memórias, tenho vontade de abraçá-lo. Todos que encontro por aí. Agradecê-lo por ter concedido a graça de ser um amigo na infância, anjo da guarda cheio de passarinhos, bichos-de-pé, abelhas, esconderijo invisível.

 

Gosto dessa luz estourada da estação do caju, mais rugas no rosto, nuvens estiadas, ventania nos olhos e a memória da melhor performance de um pai

 

O tempo de caju é uma lembrança renovada pelos homens queimados pelo sol da primavera em Fortaleza, futurantes de esquinas. É temporada, também, dos pólens avoando e agoniando os espirros.

Gosto dessa luz estourada da estação do caju, mais rugas no rosto, nuvens estiadas, ventania nos olhos e a memória da melhor performance de um pai. Estive pensando nele. Não nos deixou um castelo, um shopping de herança, nenhuma pataca!

Contrário, muito nó nos pensamentos, padrões escrotos brigados para não repeti-los... É verdade, ele apresentou a árvore do cajueiro, a castanha, o cheiro da fumaça assando, o "leite" quente respingando na pele, a cajuína, o doce,...

Existirmos, talvez, seja também uma temporada do caju.

 

 

Foto do Demitri Túlio

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