Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
O último casarão da Santos Dumont, sobrevivente no quarteirão entre a Carlos Vasconcelos e a Monsenhor Bruno, não será derrubado. Costumeiramente, se grita por casas antigas demolidas de repente ou que estão à beira de ir ao chão.
Acontece que lá, a família resolveu partilhar a memória edificada e o espírito da casa. Micélios de parentes que rebentaram e, depois de beberem uma vida, se despediram um dia. Algumas casas têm alma e universos paralelos arrodeando.
Uma casa bem senhora, que virou quase gente porque já foi habitat, tem diários e cartas escritas nas paredes e no chão. Quintais que falam e árvores que mudam de lugar durante a noite das criaturas.
Apenas uma árvore, talvez, será sacrificada. E a casa, sem nenhum arranhão, vai virar vãos de convivência coletiva e corredores de recordações
Disseram-me que os herdeiros de dona Violante e a irmã Eliane Cardoso, já idas daqui, irão construir um prédio para moradias em uma parte do quintal.
Apenas uma árvore, talvez, será sacrificada. E a casa, sem nenhum arranhão, vai virar vãos de convivência coletiva e corredores de recordações.
É quando arquitetos descobrem que "vender" história privada, "negociar" memórias também pode dar dinheiro. Uma sensibilidade que quem reconstrói Fortaleza pouco tem. Já pensou, quantas lembranças estão enterradas nos prédios onde mora a Aldeota e a Cidade quase toda?
Aliás, a praça rodeada de castelinhos deveria se chamar Praça Dona Pierina
Dona Violante e Eliane um dia, gentilmente, aceitaram me receber na casa da Santos Dumont, em frente à praça de dona Pierina - hoje Luíza Távora. Aliás, a praça rodeada de castelinhos deveria se chamar Praça Dona Pierina.
Nada contra a dona Luíza. Ela fez um bem danado em mandar Virgílio Távora não deixar passar o trator nas favelas do Campo do América e Quadras do Santa Cecília. Duas canetadas incômodas, mas imprescindíveis para quem também tinha direito de viver no bairro dos bestas.
Pois bem. Dona Violante e Eliane me acolheram com um grupo de universitários do Jornalismo da Fa7, a turma da Denise Gurgel. Uma conversa sobre o tempo da casa, a vida alheia delas e a rua que ainda nem era Santos Dumont. Cheia de oitis.
No inverno, recontou Eliane e vi a imagem vindo, tinham de atravessar "de bote" para o outro lado até onde hoje é a Fiec. Por ali, ainda na Barão de Studart
Ainda passava um bonde, em frente à casa, quando as duas eram mocinhas e tinham de ir até o fim da linha. Perto de onde hoje é o Colégio Christus, mais ou menos na Barão de Studart com João Carvalho.
No inverno, recontou Eliane e vi a imagem vindo, tinham de atravessar "de bote" para o outro lado até onde hoje é a Fiec. Por ali, ainda na Barão de Studart, onde morava dona Maria Pestana - uma parteira portuguesa e outras prendas.
"De bote?" Fiquei imaginando o mundaréu d'água e um barco para travessia na baixada onde hoje é o asfalto da Júlio Ventura com Barão de Studart. Lembrei, claro. Era o riacho Pajeú nas enchentes, ficava enorme com as chuvas dos começos dos anos bons de inverno.
Às vezes, passo por lá e escuto a voz dele chiando e ainda sendo riacho. Ele sempre volta e se encomprida quando a chuva é foda e engole carros na Heráclito Graça
O Pajeú nasce por trás do Pão de Açúcar, na Bárbara de Alencar com Silva Paulet. Hoje, está enclausurado no concreto da Cidade. Às vezes, passo por lá e escuto a voz dele chiando e ainda sendo riacho. Ele sempre volta e se encomprida quando a chuva é foda e engole carros na Heráclito Graça. Bem feito!
Pois então. O casarão onde viveram as irmãs Violante e Eliane Cardoso - cheio de árvores, lembranças e bichos (tinha até um cágado) - não terá as memórias interrompidas. Ficarão circulando no entorno do prédio que será construído no quintal. Coisa bacana a cabeça desses arquitetos que vou procurar os nomes.
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