Logo O POVO+
Nunca naturalizar a dor
Foto de Demitri Túlio
clique para exibir bio do colunista

Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Nunca naturalizar a dor

Não existem somente quatros estudantes feridos numa rede de Educação onde um adolescente de 15 anos se fere de dor e fere outros três alunos
Tipo Crônica

Antes de escrever a crônica de hoje, estava trocando zap com o amigo de Redação e artista visual Carlus Campos sobre a arte que se casa com texto todos os domingos. Dialogamos às sextas-feiras sobre qual enlace há de ser.

Não tinha ainda escrito nenhuma linha. Ainda estava fadigado da volta noturna de Sobral e remoendo sobre a tragédia entre os quatro adolescentes, de 15 anos, da escola estadual Professora Carmosina Ferreira Gomes.

Bullying foi a justificação narrada pelo garoto que atirou nos três colegas de escola. Uma pena, se feriram os quatro. O atirador improvável, agora, está na exclusão de um Centro Socioeducativo. Dois feridos receberam alta e voltaram para casa. O quarto menino luta para sobreviver e a família reza e dói.

 

Teria usado a palavra para demovê-lo do revólver fácil. Teria abraçado o menino tomado pelos silêncios em casa e na escola


Uma pena, digo novamente. Ah, se eu fosse algo que tem mobilização sobrenatural para autorizar o regresso no tempo! Minutos antes dos disparos, horas antes, dias antes, semanas antes, meses antes, anos antes... eu teria.

Teria usado a magia, a dança, o milagre, o tambor, a música, o celular, o jogo, o livro, o teatro, o poema, a palavra para demovê-lo da arma de fogo, do revólver fácil. Teria abraçado o menino tomado pelos silêncios em casa e na escola.

Ele era calado e se esconderia num sono cheio de interrogações na hora da aula, me contou uma aluna e gente frequentadora da casa dele.

 

Quem deu conta? Quem se incomodou? Quem insistiu? Quem perguntou o que sonhava o adolescente?

 

Alguns o zombariam de "morto" porque se apagava, talvez para ficar invisível no tempo integral da escola. Talvez, talvez, talvez, talvez... Quem deu conta? Quem se incomodou? Quem insistiu? Quem perguntou o que sonhava o adolescente?

Fácil falar depois do ocorrido, verdade, mas precisamos botar pra fora. Doer e ruminar a dúvida, a suposição, a revelação, a informação e as versões sobre os motivos dos tiros naquela quarta-feira de "fatalidade".

"Fatalidade" não foi. Desculpem-me os gestores do bom sistema educacional público de Sobral, principalmente o municipal.

No dicionário, "fatalidade" define o destino que "não se pode evitar", o fatalismo que se monta no repente e, depois, a gente somente berra a dor. Não, não cabe um "fado" aí.

 

Tenho o prazer de pisar em Sobral e saber que a maioria das escolas tem como regra cercar cada menino e menina de livros e leituras 

 

E falo assim, parecido com arrogância sem ser, porque me acostumei e tenho o prazer de pisar em Sobral e saber que a maioria das escolas tem como regra cercar cada menino e menina de livros e leituras. Eles e a casa.

Sou autor de alguns livros do valoroso Programa de Alfabetização na Idade Certa (Paic). "O Ovo Mudo", um poema do pé quebrado, é um deles. A história de um "ovo" tímido, ensimesmado que não quer quebrar de jeito nenhum. Envergonhado, amedrontado, acabrunhado...

Lembrei do garoto dos tiros que provavelmente rebentou ferido de dor e feriu, de quase morte, os outros.

Mesmo que tudo seja bem direitinho na Carmosina Ferreira Gomes, algo escapou aos olhos ou foi naturalizado. E não há somente quatro estudantes feridos. É investigar e preparar jornadas de amor contra o constrangimento, o revólver e a "vingança".

 

A ideia seja desenhar meninos e meninas (misturados) discutindo e da boca deles saíssem flores, corações, passarinhos, livros

 

Sim, pedi ao Carlus Campos para se inspirar no que fosse contrário ao bullying. Contrário à brincadeirinha "sem intenção" que machuca, às vezes, uma vida inteira. Do que fosse linguagem para o convívio, principalmente, nas diferenças.

"Carlus, talvez, a ideia seja desenhar meninos e meninas (misturados) discutindo e da boca deles saíssem flores, corações, passarinhos, livros... Uma linguagem não violenta. Pra fazer o contraponto ao bullying e a gente ir na direção contrária da violência e da arma".

 

 

Foto do Demitri Túlio

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?