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Os rios não podem parar de voar
Foto de Demitri Túlio
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Os rios não podem parar de voar

Sopa de tomate nos Girassóis de Van Gogh, em Londres, e uma lata de Kaiser que boia no rio Cocó até o Atlântico
Tipo Crônica
1610demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1610demitri

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Há pessoas que ficam bonitas quando chegam perto de árvores. A trovinha se inventou quando estava conversando com uma mulher florescida que frequenta a floresta do Curió. A florestinha, por ser uma das ilhas em Fortaleza, é uma história sobrevivente.

É um dos matos que escapou, mesmo com o desflorestamento do que foi a exuberância no território de Messejana. Ainda é fogosa, mas hoje há mais condomínios do que jandaias revoando ao redor. Há mais lixo que rios sem latinhas de cerveja boiando.

Jandaia é um bicho que eu queria ter a cor dela, ela está por um triz de ser extinta no Ceará.

Ter o risco de perdê-la de vista, de deixar de ver o amarelo forte, o preto do bico, o verde, o vermelho ou alaranjado do corpo atraente da bicha? Dá um negócio ruim avistá-la, uma ou outra, cada vez menos.

 

Raça? Jandaia. Deixaria de responder "pardo" porque dizem que não sou nem negro e muito menos branco

 

Queria a caixa de lápis de cores dela no meu corpo. Assim, talvez, difícil seria me rotular, como fazem muitas vezes.

Raça? Jandaia. Deixaria de responder "pardo" porque dizem que não sou nem negro e muito menos branco. Já me vigiaram, andando atrás de mim, quando fui "malvestido" numa dessas lojas de vender aparência. Talvez porque não tenha raça definida. kkkk

Há alguns meses ando meio por fora do Cocó, não sei dizer o porquê. Somente leio recados sobre esse ser vivo insistente. No sábado retrasado, botei os pés por lá como antes. Parecia voltar para casa. Eu e Saulo, meu tatuador preferido, amigo de várias vidas e filho.

Fomos conversar também sobre repentes surpreendentes que chegam de supetão. Menos esperamos, desses de entortar a possibilidade do viver.

Daqueles redemoinhos em família que varrem tudo de lugar e areiam os olhos. A gente tosse, a gente cai um cisco no inconsolável, a gente fica um pouco silenciado.

 

No rio, boiando, uma lata de Kaiser me fazia gasturar. Cinco, dez tampinhas de plásticos de Coca-cola, de guaraná Antártica

 

Há risco de extinção, mas também enredo de cura. Ficamos na ponte da trilha do Rio. Final de tarde, já menos sol, a maré entrando na Cidade. Tão bonito isso e um bando de andorinhas voando rente a lâmina d´água. Só vê quem se dispõe.

No rio, boiando, uma lata de Kaiser me fazia gasturar. Cinco, dez tampinhas de plásticos de Coca-cola, de guaraná Antártica, o saco de nissin miojo e o rio enguiando feito reação a um gole de curante fuderoso.

Mais também uma alegria crudelíssima, ele sobrevive desde as invasões até aqui. Há filhotes de camurupim saltando na água cheia de oxigênio e plástico. Há cardumes de tilápias gordas que irão povoar as lagoinhas da floresta quando chegar o tempo das enchentes.

Não há mais variedade de caranguejos na Sebastião de Abreu. Somente o guaiamum solitário, outro jurado de extinção. Teimoso ele.

Uma amiga me mandou uma notícia sobre duas moças do "Just stop oil" que jogaram molho de tomate nos Girassóis de Van Gogh. Depois, se colaram à parede onde está a obra de arte na National Gallery, em Londres. Protesto contra a exploração de combustíveis fósseis e falta de proteção do mar.

 

E se o mundo acabar não adiantará a arte sacralizada pelos sovinos londrinos e parisienses

 

Tomei um susto, mas há um super vidro que protege a criação. Fiquei ruminando. Os biomas estão sendo derretidos no calor, no microplástico, no fogo, na acumulação de fortunas, no extermínio de habitantes das árvores, na fome... um protesto assim é arte também.

E se o mundo acabar não adiantará a arte sacralizada pelos sovinos londrinos e parisienses. A gente fica irado porque jogaram sopa de tomate nos Girassóis do Van Gogh, na terra da rainha invasora. Mas não pira com o saco de miojo descartado no rio Cocó.

Pouco se importa com o Parque das Carnaúbas, no Ceará, e o risco de uma usina eólica acelerar a extinção de 24 espécies de bichos que também têm direito à Terra. Cadê a proteção deles?

Os rios voadores têm de continuar flutuando na Amazônia e na Lagoa da Maraponga. As pessoas se curam de algo quando experimentam uma floresta ou se sentam numa praça cheia de sibites.

 

 

Foto do Demitri Túlio

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