Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Na avenida Rui Barbosa, esquina com Torres Câmara, às 8 e pouco da manhã da última sexta-feira reencontrei vizinhos que não via há quase um ano. Tempo em que me enchi de saudades por causa da distância de histórias regadas por ali.
Memórias do 14º andar... e do entorno costurado num lugar privilegiado da Cidade que se oferece em 15 minutos. Proximidade com quase tudo e soluções para trivialidades e urgências.
A padaria Ideal, o cinturão de supermercados e farmácias, os restaurantes, as praças boas feito a Luíza Távora, o urologista da vizinhança que resolve a prevenção numa dedada anual e o dono, meio bruto, do galeto mais antigo da Aldeota.
"Têm os pés de jambo na Carlos Vasconcelos e um discreto pé de cajá na Torres Câmara, vizinho de um ipê amarelo"
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Há, principalmente, coisas eleitas importantes para além da categorização da importância. Por exemplo, as duas mangueiras da academia Tereza Passos na Monsenhor Bruno com Afonso Celso.
Tornaram-se habitués, vizinhas agradáveis e ponto de encontro com o bando de periquitos-do-encontro-amarelo. Em 2019, roeram quase todas as mangas tamaracás da Monsenhor Bruno, mas não tocaram nos cachos da Afonso Celso. Não regressaram em 2020, no pico da pandemia. Ou eu, contaminado, sofria alucinações.
Têm os pés de jambo na Carlos Vasconcelos e um discreto pé de cajá na Torres Câmara, vizinho de um ipê amarelo que já pariu dezenas de bem-te-vis. Todo ano dois ninhos servem de maternidade.
"Igreja bonita, antiga, mas gélida no acolhimento. Lugar sem quermesse, sem rodas gigantes, sem crianças correndo"
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Na Rui Barbosa, voltando, há um estirão de pés de oitis nas calçadas, têm alguns quintais sobreviventes e bosques de bolso feito o jardim do flamboyant vermelho na gradeada igreja das Irmãs Missionárias.
Igreja bonita, antiga, mas gélida no acolhimento. Lugar sem quermesse, sem rodas gigantes, sem crianças correndo, sem prendas nem rifas, é a Aldeota. Pode ser implicância, talvez lembrança da tragédia machista de um militar do Exército que atirou na esposa, durante uma missa, e depois se suicidou.
Mas a Rui Barbosa é simpática com seus pés de oitis. Foi lá que reencontrei meus vizinhos soins. Uma família que se reveza no nascimento, morte e sobrevivência do bando desde 2014. Tempo em que me mudei para aquele habitat, durante a copa do mundo do 7 a 1.
Os soins - contei quatro - corriam equilibrados no emaranhado e fios das operadoras de telefones que passam por baixo dos oitizeiros. Fazem isso todos os dias, semelhante a nós-humanos quando vamos a pé, de ônibus e nos automóveis atrás de comida e água.
Eu estava na esquina da Torres Câmara com Rui Barbosa, no sinal vermelho, pensando no desaparecimento de Lizangela Rodrigues da Silva Nascimento. Tia e a principal testemunha do assassinato de Mizael Fernandes, garoto executado numa ação atabalhoada da Polícia Militar, em Chorozinho. Foi morto enquanto dormia.
Lizangela ou "Canoa" sumiu há 14 dias. Leidiane, a irmã dela e mãe de Mizael, liga pra mim quase todo dia pedindo que o jornal não deixe o caso cair no esquecimento. E que ajude na cobrança pelo paradeiro da irmã.
"Pedir o "favor" de ser ouvida com atenção. De cobrar da Secretaria da Segurança do Ceará a investigação sobre o sumiço de Lizangela"
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Por último, Leidiane iria atrás do escritório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em Fortaleza, e do deputado Renato Roseno (Psol).
Pedir o "favor" de ser ouvida com atenção. De cobrar da Secretaria da Segurança do Ceará a investigação, empenhada, sobre o sumiço de Lizangela.
Eu pensava na vida precipício de Leidiane e no sumiço de Lizangela, quando os soins passaram por trás do sinal vermelho. Os sem-floresta da Cidade. Decidi desviar o caminho por uns segundos, dobrar na Rui Barbosa, parar e filmá-los. Foi um reencontro.
"Voltei a pensar nos soins, enquanto filmava com o celular. Em qual floresta dormem na Rui Barbosa se floresta não há?"
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Cada um com a extinção que alguém impôs. Leidiane é cheia de extinções. Perdeu dois filhos e, agora, a irmã. Já pensou em enviar uma carta para o governador Elmano (PT), mas não sabe ler nem escrever aos 38 anos. Terá de pedir favor.
Voltei a pensar nos soins, enquanto filmava com o celular. Em qual floresta dormem na Rui Barbosa se floresta não há? Eles sobrevivem.
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