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Nata do lixo, luxo da aldeia
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Nata do lixo, luxo da aldeia

O aperreio na aldeia tem levado pedintes e aproveitadores, agora, para dentro dos grandes shoppings e supermercados de Fortaleza. Antes, a mão que aperreava era somente nas calçadas e semáforos
Tipo Crônica
0708demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0708demitri

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A canção de Ednardo, Terral, poderia ser atualizada. Ou não. A aldeia-Aldeota está mais às tontas com os "misérables" que resolveram não bater à porta. Agora, decidiram ocupar o interior dos grandes supermercados e shoppings no miolo endinheirado de Fortaleza e nos bairros onde as filiais expandem o consumo.

Principalmente de 2020 para cá, o negócio expugnou. Tempo em que a morte desenfreada por covid e a fome resolveu se aculear.

Quem tem quase nada e precisa comer, ou quem faz da mendicância um negócio criminoso, está constrangendo ou sendo constrangido nos lugares antes inacessíveis à pobreza que se quer a distância.

 

Na última semana, um vídeo correu o Instagram. Eram seguranças do Iguatemi numa briga com um grupo de cinco mulheres - duas adultas e três adolescentes. Atracado feio, força bruta

 

Estão incomodando os que consomem muito. O pessoal que até dá esmolas para amenizar a culpa e se alivia quando doa moedas do troco e sobras do almoço no restaurante.

Na última semana, um vídeo correu o Instagram. Eram seguranças do Iguatemi numa briga com um grupo de cinco mulheres - duas adultas e três adolescentes. Atracado feio, força bruta, gritos, arrastados pelos cabelos, vitimização e filmagens virais.

Deprimente assistir à cena. Talvez, o primeiro sentimento seja o mal-estar de ver a pobreza contra a pobreza se estapeando na arena do consumo. Em jogo, conceito e preconceito contra quem é pedinte ou furta. Contra os ricos também.

 

Discutir com moralismo e meritocracia o "certo" e o "errado" deu, por exemplo, no bolsonarismo e na desgraça em que o País se enfiou

 

Há razões para pedir esmolas e até roubar. Discutir com moralismo e meritocracia o "certo" e o "errado" deu, por exemplo, no bolsonarismo e na desgraça em que o País se enfiou. Já não era lá essas coisas a promoção de justiça social e piorou desproporcional.

Um vigilante de um supermercado me contou sobre a invasão de grupos de mulheres e a sinuca de bico que causam no interior das lojas. "A gente não pode mais bater, todo mundo tem um celular pra filmar. Quer dizer, não podemos mais ser duros...", soltou sem querer.

As mulheres, vestidas "normais", sem molambos como cenário, miram apenas em "esmolas" específicas. "Leite em pó e fraldas". Deixaram as calçadas dos shoppings e dos supermercados e passaram a bater ponto nas gôndolas e nos caixas. Abordam sem cerimônia a freguesia.

 

É encarar o cenário e se aceitar como parte da solução. Eles também querem consumir nos shoppings e no supermercados. Na legalidade ou no crime

 

Um alvoroço para os guarda-costas da clientela. Fazer o quê? Impedir alguém de entrar no "estabelecimento" por causa do pressuposto da suspeição, da aparência fora do padrão dos frequentadores? Não são poucas as situações em que gente da pele negra é lida como "suspeito" nas lojas de bacanas.

Está posto no Iguatemi, no RioMar Papicu e bairro Ellery, no North Shopping, No Parangaba, nos supermercados São Luiz, no Pão de Açúcar, no Cometa, no Frangolândia, no Carrefour e outros... pedintes e golpistas entraram na rotina do consumidor habitué.

É encarar o cenário e se aceitar como parte da solução. Eles também querem consumir nos shoppings e no supermercados. Na legalidade ou no crime.

A burguesia empresarial de Fortaleza foi pedir socorro no andar de cima, recorreu ao Tribunal de Justiça do Ceará.

 

Ações que refletem na justiça social e na engrenagem da mendicância de crianças, adolescentes e adultos. E até no consumo desigual na aldeia

 

O TJ não conseguirá transformar a leva de famintos e de aproveitadores em consumidores nos grandes shoppings e supermercados. Não é função do Tribunal.

Na origem, o TJ é mediador de conflitos e aplica a lei se houver crime. Por outro lado, poderia ser mais efetivo na cobrança por julgamento de ações contra a Prefeitura de Fortaleza e os governos do Ceará e da República.

Ações que refletem na justiça social e na engrenagem da mendicância de crianças, adolescentes e adultos. E até no consumo desigual na aldeia.

 

As cenas constrangedoras nos shoppings e supermercados continuarão viralizando e assustando. Eles e elas também querem usufruir 

 

A precariedade dos conselhos tutelares, dos Creas, dos Cras, além da aplicação de recursos públicos, é pauta corriqueira no Ministério Público.

Se a rede de assistência é capenga e funciona na gambiarra, as cenas constrangedoras nos shoppings e supermercados continuarão viralizando e assustando. Eles e elas também querem usufruir em abundância e frescar nos shoppings.

É a nata do lixo, é o luxo da aldeia, é a mão que também quer passar e receber pix.

 

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