Logo O POVO+
As borboletas de Mafalda
Foto de Demitri Túlio
clique para exibir bio do colunista

Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

As borboletas de Mafalda

Uma crônica sobre o indizível campo do viver e do se encantar e a palhaçaria feito ponte nos hospitais para crianças breves
Tipo Crônica
1902demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 1902demitri

.

Vivalda Mafalda me deixou calado e a ruminar, ajudou-me a tanger uma incômoda melancolia. Às vezes, carecemos de cuidados paliativos. Nos despedir do que não precisa mais de existência no corpo. Perder, também, não é ruim. É também.

Ela é uma palhaça que convive há 21 anos, principalmente, com crianças e adolescentes no derradeiro das brevíssimas vidas deles. Não adianta fabular sobre as interrogações.

Veste-se de Vivalda Mafalda Cara-de-Fralda, @vivalda.mafalda o ano inteiro, menos no Carnaval. Não transcende com a folia do tempo decretado para a felicidade.

 

Vai indo de leito em leito porque acredita que o palhaço diante da enfermidade extrema atua num ínfimo da possibilidade

 

Nos hospitais, vai indo de leito em leito por onde a chamam ou porque acredita que o palhaço diante da enfermidade extrema atua num ínfimo da felícia ou de uma possibilidade.

Mafalda contou-me uma história que a medicina nunca dará crédito científico, mas experimentou. Tivessem umas disciplinas obrigatórias de palhaçaria nos cursos dos doutores, ajudariam a pelo menos achar proseável o inexplicável.

Quando a travessia se aproxima das crianças breves, há um campo sobrenatural que se mexe entre o viver e se encantar. Um dia, Mafalda recebeu um recado de um menino pedindo para ir vê-lo com certa urgência.

 

Lívia é a identidade secreta e humana quando a clown está de cara, vestida feita uma anônima no dia a dia

 

O menino, paciente agravado por uma leucemia aguda indiferenciada - quando o quadro é difícil de mapear e de curar, havia relatado para o médico, que precisava da visita da palhaça "Lívia". Disse o nome e tudo.

Lívia é a identidade secreta e humana quando a clown está de cara, vestida feita uma anônima no dia a dia.

Abordada pelo médico no corredor do hospital onde o menino estava internado, Lívia disse que Mafalda nunca tinha feito atendimento ao pequeno paciente.

 

Mafalda foi encontrar a criança. Ao vê-la chegar, o menino baixou o pano e se abismou

 

O caso se deu 2021, em Fortaleza, num hospital que atende crianças surpreendidas pelo câncer. E o pior, ainda num cenário de "The last of us" por causa da contaminante e mortífera covid-19.

Mafalda foi encontrar a criança. Ele passava o dia coberto por um lençol e máscara, não se mostrava mais. Ao vê-la chegar, o menino baixou o pano e se abismou.

"Você veio? No meu sono, você disse pra mim acordar. Você é a borboleta que disse que vinha me levar?". Mais ou menos ele disse isso e todo mundo, até o médico que estava no leito, se derramou em ciscos nos olhos e chuvas.

 

As borboletas aparecem diante dos olhos de algumas crianças que estão na beirinha da partida

 

Tem um detalhe, o menino havia saído de um coma de 20 dias e estava entregue ao setor de cuidados paliativos. Teve uma leve sobrevida e, dez dias depois, se transformou em saudade.

Lívia e Vivalda Mafalda contam que as borboletas aparecem diante dos olhos de algumas crianças que estão na beirinha da partida.

Noutra ocasião, Mafalda chegou ao leito de outro anjo adoentado e ele pediu a ela que o visitasse sozinha. Não precisava vir acompanhada.

Acompanhada? Muitas vezes Mafalda está com o palhaço Soneto, sua dupla no hospital. Mas o garoto não se referia ao amigo de Mafalda e coordenador do grupo de pesquisa em clow terapia Bobalhaço (@bobalhaco).

Era, mais uma vez, uma criança enxergando na palhaça um voejar de borboletas. Descrição de meninos e meninas prestes a partir. Há metáfora, há também o inefável. Crianças não deveriam ser breves. 

 

MAIS CRÔNICAS DE DEMITRI TÚLIO

O gosto irresistível que os corpos têm 

As esquinas de um texto

Onde está Lizangela de Mizael

 

 

Foto do Demitri Túlio

Ôpa! Tenho mais informações pra você. Acesse minha página e clique no sino para receber notificações.

O que você achou desse conteúdo?