Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
O "Comida de Açude" é um restaurante particular e íntimo que montei em minha casa. Foi durante a matança da covid-19. Tempo em que muitos morriam também de fome e a classe média e os ricos comiam fartamente. Nunca beberam tanto vinho e uísque. Enchemos os rabos.
Até hoje, funciona porque perdi o encanto com os restaurantes de preços assaltantes por pratos mais ou menos e ruins. Ainda vou em alguns. Assim, com o "Comida de Açude", destampei uma memória da cozinha lá de casa que julguei sem valor.
Curioso é que éramos classe média baixa aperreada, mas na cozinha simples de mamãe (mesmo a casa sendo de minha bisavó paterna) havia quase sempre "empregadas" para lavar a roupa e auxiliar no fazimento dos pratos.
Dona Joana Bu não ia tanto lá em casa, mas quando vinha trazia doce de caju. Uma delicadeza aquele feito com o quintal dela
Dôrinha e sua mãe, dona Joana Bu, duas pretas com dentes de prata nos brides, faziam as duas funções. Minto. Dôrinha, sempre de lenço e grampos no cabelo por causa do crespo, lavava e passava.
Dona Joana Bu não ia tanto lá em casa, mas quando vinha trazia doce de caju. Uma delicadeza aquele feito com o quintal dela ou cajus arranjados nos caminhos de uma Cidade mais "pomarizada". Era delicioso o gosto da lenha impregnado no fruto e um tesão precoce pelo melado.
Meu avô, um ser vivo de Camocim, da beira do braço do rio Acaraú com o Atlântico, era um socó. Cheirava o gosto dos peixes. Ia da trata da escama à retirada das vísceras. Era dono de um caldo na água grande de dar na fraqueza e, quem comesse o pirão escaldado do camurupim, tinha gozo.
Muito tomate, pimentão, cebola roxa, alho, coentro, cebolinha, sal a gosto, dois ovos cozidos, pimenta do reino e o camurupim
Assim, descobri que havia guardado receitas sobreviventes feito uma "peixada na água grande". Hoje, no "Comida de Açude", a invoco por "peixada a Porangabuçu avoenga".
Muito tomate, pimentão, cebola roxa, alho, coentro, cebolinha, sal a gosto, pedaços de batata inglesa e de cenoura, dois ovos cozidos, pimenta do reino e o camurupim em postas ou no filé alto (pra não se desmanchar no bafo).
Pode ser com tilápia africana ou outro peixe de água doce. Quando íamos pescar no Maranguape, o cará era cozido na beira do açude, logo depois de pescado. Um "merol". E cará era o nome de pobre dado à tilápia cara de hoje.
Todo mundo no "meu governo" teria de não ter pelo caminho da existência gente que empatasse direitos básicos
O "Comida de Açude" é uma frescura de quem tem acesso, agora, ao alimento abundante e privilegiado. Quem não depende da caridade alheia nem da culpa disfarçada dos outros. Imagine ter de esperar, todos os dias, por uma quentinha caridosa.
Todo mundo, no "meu governo", não terá pelo caminho da existência gente que empate direitos básicos. Como comer.
Amanhecesse, a fulana, o cara e a récua de filhos teriam o pão, o ovo, o café, a fruta e até o pastelzinho de Belém se apetecessem da herança invasora. Além, é claro, de almoço suficiente, uma janta e um docinho sem diabetes. Pelo menos.
Sirvo pratos afeitos, pastos, vitualhas, viandas e manjares inventados no toque da pimenta dedo-de-moça, no gengibre
O "Comida de Açude" é uma cozinha íntima, nem todos experimentaram meu corpo fazendo algo à beira do fogão. Não estou viçando. É uma crônica sobre os que comem esbanjadamente e os que são comidos pelo sovino da Cidade exclusiva.
Sirvo pratos afeitos, pastos, vitualhas, viandas e manjares inventados no toque da pimenta dedo-de-moça, no gengibre e, como minha classe é média, embebedo na cachaça com malte quem chamo para comer em casa. É hora que dou minha cozinha com todas as memórias. Cruzo.
Não é non sense. Comer não é um ato político panfletário nem um favor que se faz. É gozo natural e quando me sirvo para alguém, com apetite, lembro do cheiro de minha mãe descascando laranja Bahia depois de algum almoço de domingo. Adorava as tiras das cascas enganchadas nos caibros e os seios fartos dela.
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