Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.
Uma crônica sobre os recomeços amorosos e a brutalidade de ter um banco de expectativa sobre o outro. Isso, talvez, seja covardia. Melhor incluir os defeitos
De repente, uma epidemia de finais de amores longevos. E não vou me valer, numa tentativa de crônica, dos números do IBGE nem atribuir os "the end" da vida a dois à pandemia da covid-19.
Não me apetece a estatística nem a história de que a proximidade forçada pelos lockdowns foi o motivo para casais homos, heteros e variações terem percebido que o bem querer tinha se esvaído.
A covid-19 virou meio a desculpa para quase tudo de ruim no pós-pandemia. Há sequelas dolorosas, sim. Amorosas "aussi". Como a ausência doída de alguém abduzido quando menos esperamos. Nem nos despedimos nem nos velamos.
Mexeu, óbvio, com corpo inteiriço, com a ordem dos medos e do cartesianismo
E, também, há gente reaprendendo a andar depois de dias ou meses em suspense na UTI. Claro. Mas aí é o rastro bendito do vírus que tivemos de incluí-lo em nossos dias e adiante.
Perturbações psicológicas! Pessoas ainda usando máscara, mesmo vacinadas! Órfãos de filhos, tios, mães, avós! Chinelos e sapatos ainda à porta...
Mexeu, óbvio, com corpo inteiriço, com a ordem dos medos e do cartesianismo. Mas o amor, o fim idílio ou a insuficiência do gostar para ir adiante com o crush? Não sei. Ou, talvez, cada um saiba.
O amor não se desfaz, não. Há um lugar no corpo da gente para amores arrebatantes
E mesmo que a morte por covid tenha desenhado outra perspectiva sobre a finitude, a decisão de desfazer o que foi paixão e, depois, se transformou em amor, teria outras nuances. O amor não começa tarde, vige é cedo e dura.
O amor não se desfaz, não. Há um lugar no corpo da gente para amores arrebatantes. Há universos paralelos ainda se dando, beijos beijados, transas trepadas, corpos em conchas, falas indizíveis, ínfimos.
Depois das paixões, do amor, a gente nunca mais é apenas a gente.
O mito assombroso de Lilith, as asas desse ser andrógeno, me vem ao corpo inquieto quando penso nas separações recentes e a de minha bisavó que se apartou já bem idosa. Aos 80 e poucos anos e foi experimentar mais incerteza.
Conta uma das versões sobre Lilith, que Adão foi choramingar a Deus. Resmungar ao onipotente
Lilith é primeva mulher da criação, teria se recusado às benesses do paraíso da origem, abdicado de viver nababescamente com Adão e seus chiliques a Pedro I. Ela teve a primazia do desquite, a que inventou o "sair de casa".
Dona Leopoldina tivesse lido o que escreveram no conto bíblico de Lilith, teria dado com os pés no macho bárbaro português e reescrito o tratado entre Lisboa e Viena. Reescrito o amor dela por ela.
Um diabo para os cristãos. Conta uma das versões sobre Lilith, que Adão foi choramingar a Deus. Resmungar ao onipotente que ela não seria a mulher talhada para ter a proteção do bichão. Queria outra "fêmea" e Eva foi tirada da costela dele. Lilith também teria vindo do barro.
Lilith, talvez, seja uma alegoria sobre o mito da expectativa sobre o outro. Uma brutalidade
Lilith se recusou, durante o que foi (talvez) o primeiro coito (chato) para reprodução da espécie, ficar por baixo do macho. Ela queria sentar-se, fincar-lhe as mãos no peito dele, trotar, desembestar o quanto fosse e, talvez, dizer as primeiras sacanagens do mundo.
Por resolver que não seria a mulher (e o homem, era andrógina) de Adão, ela foi castigada a "correr com os gatos selvagens e as hienas". Melhor. Ora mais, foi viver fora das expectativas impostas pelo divino e humano.
Lilith, talvez, seja uma alegoria sobre o mito da expectativa sobre o outro. Uma brutalidade. Sim, também sobre o machismo judaico-bíblico-cristão e sobre outras mazelas criadas para disciplinar a vida alheia, pública e privada.
Vou terminar a crônica porque corro o risco de enveredar pela autoajuda e aconselhamentos bestas
Mas é, ainda, a possibilidade de outras leituras possíveis. De olhar desatravessado e entender sobre a inclusão dos "defeitos" do outro no relacionamento. Não os banir nem insistir na imagem à semelhança do parceiro ou companheira. Ouvi e gostei desse dito.
Vou terminar a crônica porque corro o risco de enveredar pela autoajuda e aconselhamentos bestas. Não tenho essa vocação e uma frase de Gilmar de Carvalho caberia aqui, mas julgariam imprópria. Alguns leitores, provavelmente, reclamarão à ombudsman da baleia fedendo na calçada. Tudo bem.
Amores são infinitos, mesmo quando acabam e vão se arriscar por aí. E o futuro, provável, não existe. Feito a covid que deu a impressão de que nós todos havíamos morrido. Ou então, morremos mesmo. Acho que não.
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