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Rua do Guaiamuns, alameda das Raposas
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Rua do Guaiamuns, alameda das Raposas

Bichos, árvores, rios, oceanos, florestas também existem e são importantes para o "existirmos". O antropocentrismo nunca foi tão caduco e exterminador
Tipo Crônica
0801demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0801demitri

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Há algum tempo venho tentando me desfazer da escrita antropocêntrica. Mentalidade e rotina caduca, jeito enviesado de olhar ao redor. Pode ser besteira, pode, mas no detalhe me faz bem quando, dificilmente, consigo.

Tratar tudo que nasce na Terra por "ser vivo". Uma obviedade. Deixar a soberba de "ser humano" sobre os viventes e morrentes que por aqui vão findando e rebrotando.

Deixar dessa besteira de que o "homem" é a história mais importante do universo. Fosse assim, não teria inventado tanto lixo. Não vi, até hoje, nenhum bando de pássaros asfaltar floresta.

"Nunca vi calangos aterrarem lagoas nem córregos. E conta a história, não terem sido as cobras as sufocadoras do Pajeú no concreto"

 

Nenhum rio tocou tanto fogo em coivaras e nem na Caatinga. Nem os sapos extinguiram os vagalumes. No Porangabuçu, quando fui menino por lá, existiam sapos e vagalumes.

Existia também revoada de morcegos das 17h30min até 18 e pouco. Não há mais na Tavares Iracema.

Não foram as mães-da-lua que desapareceram com os vagalumes, com as mariposas bem-vestidas no "veludo". Nem foram os bacuraus, de voo rasos e noturnos, que passaram o trator na última mata do bairro.

"Pouquíssimas são as ruas com nomes de bichos. Talvez porque, de verdade, nunca foram importantes para os vereadores de Fortaleza"

 

Nunca vi calangos aterrarem lagoas nem córregos. E conta a história, não terem sido as cobras as sufocadoras do Pajeú no concreto.

Ele ainda nasce por ali, detrás do Pão de Açúcar da Júlio Ventura, quando se encontram as ruas Silva Paulet e Bárbara de Alencar. Está lá embaixo, encanado, a gente ainda conversa com ele.

Sintomático, pouquíssimas são as ruas com nomes de bichos. Talvez porque, de verdade, nunca foram importantes para os vereadores de Fortaleza e câmaras municipais nenhuma do Semiárido cearense.

"Nunca trafeguei por um beco que se chamasse Rua das Tijubinas. Uma avenida então, nem pensar"

 

É porque um vereador não sabe dos grandes feitos de um sibite. De quão importante é um pica-pau-carijó. E qual a linhagem de um arapaçu-do-bico-branco.

Nunca trafeguei por um beco que se chamasse Rua das Tijubinas. Uma avenida então, nem pensar. Imagine a Presidente Kenedy passar a se chamar Avenida do Tubarão-baleia da Leste Oeste?

Poderia ensinar assim, siga pela Rua dos Golfinhos. Quando chegar na esquina dos Paus-brancos, a moça dobra à esquerda e se atravessa toda pela Alameda dos Beija-Flores-Vermelhos.

"Acho mais bonito dizer "estou nas Alamedas das Acácias" do que na Engenheiro Santana Júnior"

 

Mais adiante é o cruzamento dos Guaiamuns. Chegando lá, a distinta senhorinha estará perto de seu destinatário ou destinatária.

Na Cidade 2000 há ruas e alamedas com nomes de Árvores, um bairro exceção. Acho mais bonito dizer "estou nas Alamedas das Acácias" do que na Engenheiro Santana Júnior.

O engenheiro deve ter sido muito importante para alguns. Mas nenhum pássaro? Nenhuma raposa? Nenhum caranguejo foi "relevante" pra Cidade?

"Achei bonito o Silvio Almeida berrar que as pessoas nunca deixaram de existir em quatro anos"

 

São importantes, sim. Sem ter apenas pendor de mercadoria. Existem ou existiram na casa, nalguma rua onde já fomos quintal. E ainda insistem, generosamente, em não ser extinto.

Achei bonito o Silvio Almeida berrar que as pessoas nunca deixaram de existir em quatro anos, mesmo que Bolsonaro e sua horda de fúfios tenham tentado contra o "existirmos".

É óbvio, todos os animais têm o mesmo direito que tenho de ser livre e não ser morto.

As borboletas, as tartarugas que desovam na Sabiaguaba, os preás, os guaxinins, os periquitos-do-encontro-amarelo, os balança-rabos-de-chapéu-preto...

"Existem. Não porque o "homem" quer ou porque "categorizou" a "importância". Nem porque Deus quis"

 

 

As nascentes, os olhos d'água, o oceano generoso... As plantinhas miúdas que dão flores nas coxias e os pés de chichás... vocês existem.

Existem. Não porque o "homem" quer ou porque "categorizou" a "importância". Nem porque Deus quis. É porque são existência, simplesmente assim.

(Estou de volta, senti saudades. Vamos nós)

 

 

 

 

 

 

Foto do Demitri Túlio

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